RIO – Oito milhões de exemplares vendidos pelo mundo, meio milhão só no Brasil. Traduzida em mais de 40 idiomas e com mais de 4 milhões de seguidores no Instagram. Não dá para negar: Rupi Kaur é um fenômeno.  E ela está de volta, com sua terceira coletânea de poemas.

Autora dos best-sellers “outros jeitos de usar a boca” e “o que o sol faz com as flores”, desta vez a escritora indiana-canadense se debruça sobre sua experiência com a depressão e a ansiedade, questiona o capitalismo e faz uma busca por uma reconexão consigo mesma em “meu corpo minha casa” (Planeta), com tradução de Ana Guadalupe.

“Depois de tanto tempo separados, minha mente e meu corpo enfim, voltam a se encontrar”, escreve a autora de 28 anos ao abrir a terceira coletânea. Desde 2014, quando lançou seu primeiro livro e se tornou um fenômeno mundial, Rupi vivia em ritmo digno de popstar, com uma turnê mundial seguida da outra. A pandemia a forçou a parar pela primeira vez em muito tempo e a lidar com a depressão e a ansiedade que vinham lhe consumindo. O terceiro livro fez parte do processo de cura e tem um capítulo inteiro dedicado a isso, conta a escritora em entrevista exclusiva à CELINA por chamada de vídeo da casa da família em Brampton, no Canadá, onde está passando a quarentena.

Nascida em Punjab, na Índia, Rupi migrou para o Canadá com os pais ainda na infância. Encontrou no desenho e na poesia formas de se expressar em um país estrangeiro e lidar com as experiências traumáticas que havia vivido.  E ela não esconde: sua poesia diz muito sobre si e sobre suas vivências.

Com versos simples e potentes, por vezes carregados de experiências dolorosas — como o abuso sexual, a violência contra as mulheres, o preconceito vivenciado como imigrante, e agora a saúde mental —  seus poemas, sempre acompanhados de uma ilustração feita por ela mesma, arrebataram as redes sociais. Ela conta que tenta não pensar muito sobre o alcance de seu trabalho: “Meus traumas mais íntimos, momentos mais privados estão num livro que milhões de pessoas têm nas mãos. Isso é assustador.”

CELINA: Como você passou 2020?

RUPI KAUR: O ano tem sido estranho e incerto, ninguém sabe o que vai acontecer. Tem sido difícil manter o foco e me sentir empolgada com o futuro. Ao mesmo tempo, a quarentena forçou todo mundo a se mover num ritmo mais humano e saudável. Sinto que fui mais presente este ano. E também tive que finalizar o livro: sentei para escrever em março e terminei em agosto. Enfim, o ano teve seus altos e baixos.

A pandemia e o isolamento, influenciaram o livro?

Esse ano me deixou mais confiante nas coisas em que estava trabalhando. Tenho escrito sobre depressão, ansiedade e a luta para equilibrar trabalho e produtividade. Minha preocupação era que ninguém entendesse. Estava insegura, não queria tornar isso público, mas conversei com outras pessoas e percebi que o que eu estava passando não era tão especial assim. Isso me deu humildade, me fez sentir menos sozinha e com coragem para dedicar um capítulo inteiro à saúde mental.

Antes da pandemia, eu estava em Nova York e escrevia todos os dias, mas durante a quarentena encontrei um processo que funciona para mim. Pela primeira vez em anos estive no mesmo lugar durante tanto tempo, o que trouxe paz para a minha vida. Eu acordava todos os dias bem cedo, fazia o mesmo chá com torradas, meditava, acendia uma vela e escrevia ou editava durante quatro a oito horas. A rotina e o ritual me ajudaram quando estava tentando encontrar paz.

Por que o título ‘meu corpo minha casa’?

Um dos maiores desafios da minha vida tem sido lidar com a depressão e a ansiedade. As pessoas não imaginavam, mas eu estava mas despedaçada do que nas experiências que tive de abuso. Comecei a me dar conta de que, quando uma pessoa está tão deprimida a ponto de nem querer mais estar aqui, ela se sente desconectada do seu corpo e do mundo.É daí que vem o nome, porque o nosso corpo é a nossa casa. Este livro é um símbolo de sobrevivência porque houve tantos dias nos últimos anos em que tive ideações suicidas. Sei que estou melhor agora, mas com a depressão, isso volta. E o livro será um lembrete de que fui capaz de atravessar essa fase.

O livro te ajudou a lidar com a depressão?

Ele me força a encontrar a linguagem. Eu não tinha as palavras para definir ou falar sobre o que estava sentindo. Eu sabia que me sentia horrível, mas repetia que me sentia “estranha”. O livro me desafiou a encontrar as palavras certas, e encontrá-las é fortalecedor porque você começa a identificar o que precisa para melhorar.

Você conta que se sentia sem voz na infância e que a poesia foi uma forma de se expressar. Como foi isso?

Eu era muito tímida e sofria com uma depressão crônica. Mas também acho que vi como, na minha comunidade, as mulheres eram tratadas. Cresci ouvindo meus amigos falando sobre a maneira como nossas mães foram molestadas. Eu mesma experimentei alguns desses abusos, isso está presente no meu trabalho. Fui criada numa cultura em que as meninas devem sempre ficar caladas. Acho que é por isso que me sentia tão sem voz, e a poesia se tornou o primeiro lugar onde eu pude falar sobre esses problemas. Foi uma ferramenta de cura.

O seu trabalho encorajou mais mulheres a escreverem. Como você vê isso?

Acho incrível. Eu penso que todos somos poetas e artistas porque a imaginação e a criatividade são inerentes a nós como seres humanos. Na infância, todos desenhamos e escrevemos, mas, adultos, paramos de fazê-lo. É lindo que uma geração de mulheres se sinta fortalecida e se empodere através das palavras e use a poesia para contar suas histórias. Devemos sempre encorajar isso.

Você viveu nos EUA e compartilha a origem indiana com Kamala Harris. Que tal vê-la eleita vice-presidente?

Eu senti um grande alívio, especialmente depois dos quatro anos que tivemos. Você entende, né? Eu lembro de quando Hillary Clinton perdeu em 2016. Foi a primeira vez na minha vida em que senti que eu poderia ser a mulher mais forte e inteligente do mundo e ainda perder. Kamala ser eleita foi um grande passo à frente, com certeza.

Os últimos cinco anos foram muito importantes para o movimento feminista, e sua poesia faz parte disso. O que espera para as mulheres nos próximos cinco?

Sinto que progredimos muito. Mas o meu objetivo é que um livro como “outros jeitos de usar a boca” se torne irrelevante. Eu não quero que nenhuma mulher sinta que um poema sobre violência sexual é relacionado à vida dela. Quero um mundo em que uma mulher leia o meu livro e pense: “Isso acontecia? Que barbárie.” Esse é o sonho. Eu também espero que o progresso que fizemos possa continuar e que nunca nos tornemos complacentes. Há um longo caminho a percorrer. A estrada a frente vai além de nossas vidas e, por isso, temos que continuar pressionando por mudança.