Faroeste do absurdo

Por Marcelo Tognozzi*

Frasista genial, o ex-governador da Bahia Octávio Mangabeira certa vez soltou essa: “Pense num absurdo, na Bahia tem precedente”. Mangabeira morreu em 1960, mas os absurdos continuam vivinhos da Silva.

Apareceram pela última vez há poucos dias, quando o Ministério Público e a Polícia Federal deflagraram a Operação Faroeste prendendo desembargadoras, a procuradora-geral do Estado e outros personagens de alto coturno da Justiça e da Segurança Pública.

A história da Operação Faroeste repete em escala estadual dois filmes que o Brasil inteiro viu e não gostou: o Mensalão e o Petrolão. Num enredo gasto, agentes públicos capturam uma parte do Estado e dela se valem para enriquecer espoliando o contribuinte e garroteando o Estado Democrático de Direito, num esquema de corrupção até aqui sem precedentes, pelo que foi revelado pela imprensa e o site do Superior Tribunal de Justiça.

As investigações começaram em 2019 e miram não apenas magistrados, mas também funcionários do Tribunal de Justiça, membros do Ministério Público, servidores do governo baiano, produtores rurais e advogados. Nas ordens de prisão por ele expedidas, e também em outras manifestações no inquérito, o ministro Og Fernandes não conteve a náusea ao chamar de “engrenagem criminosa” a organização azeitada por autoridades da “alta cúpula do poder público baiano” engajadas no comércio de sentenças relacionadas à grilagem de terras no Oeste da Bahia, uma das principais regiões produtoras de soja do país.

Os maiores compradores da soja baiana são os chineses, a União Europeia e os Estados Unidos. Da mesma forma que europeus e americanos reclamam da falta de cuidado com a floresta amazônica e politizaram esta situação, têm agora, junto com as ONGs, um belo motivo para bater na soja produzida no Oeste baiano dizendo que ela é a soja da corrupção. Depois da soja do desmatamento, será o novo hit nas redes sociais do lado de cima do Equador.

Há pelo menos 15 anos o Brasil expõe suas feridas em operações de combate à corrupção, cujos maiores símbolos são o Mensalão e a Lava-Jato. Incrível que o tumor lancetado agora exploda exatamente na Bahia, estado governado há 14 anos pelo PT do senador Jaques Wagner e do governador Rui Costa. Impossível imaginar que uma dupla de homens inteligentes e perspicazes como Wagner e Costa comandem a Bahia por tanto tempo sem saber nadinha sobre o esquema desvendado pela Faroeste. Então temos um esquema contaminando o Tribunal de Justiça e ninguém contou ao governador que extrapolara para sua polícia? Ou será que este era um segredo conhecido apenas pela Procuradoria-Geral da República, por sinal comandada por um baiano, e Polícia Federal?

Ulysses Guimarães dizia que o primeiro mandamento da República é “não roubar, não deixar roubar e por na cadeia quem rouba”. Roubar, verbo tão maleável, escorregadio, liso, tanto pode ser transitivo direto, quanto indireto, bitransitivo e intransitivo. A ladroagem tem esse lado camaleão – peço perdão a estes bichos mutantes – e aceita toda e qualquer diversidade malandra, matreira, escorregadia. É diferente de envergonhar, guardar ou prender, verbos transitivos, retos, diretos e nada mais.

A gatunagem baiana destampada não horrorizou apenas o ministro Og Fernandes, atual diretor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, onde juízes e desembargadores aprendem que, acima de tudo, a Justiça anda de mãos dadas com o Estado de Direito. O problema destes casos de corrupção é que os excessos financeiros dos seus protagonistas dificilmente são preventivamente estrangulados pela Receita Federal, mesmo com abundantes sinais exteriores de riqueza e todo tipo de inconsistências no banco e no cartão. Esta ineficiência o Brasil vê desde o Caso PC Farias há 30 anos. E até hoje o país não conta com um sistema de prevenção capaz de unir num só ambiente virtual todos os envolvidos no combate a este crime.

A Bahia foi tomada em 1986 por uma campanha eleitoral que elegeu Waldir Pires. Três anos depois ele largou tudo na mão do vice Nilo Coelho e embarcou na aventura da campanha de Ulysses Guimarães à presidência da República. Waldir ganhou a eleição chamando o ex-governador ACM de ladrão, mas ao deixou o governo nas mãos de Nilo, que tinha entre seus principais aliados Geddel Vieira Lima e família. Geddel foi preso e condenado. Nilo foi condenado, por improbidade administrativa, teve bens bloqueados, mas deu a volta por cima e, pasmem, foi eleito prefeito de Guanambi, no Oeste da Bahia, pelo DEM hoje presidido pelo Neto de ACM.

A Operação Faroeste é algo terrível, porque mostra a ponta do iceberg de um tipo de corrupção capaz de erodir algo sagrado nas sociedades democráticas, qual seja o direito à uma Justiça imparcial. Este tipo de contaminação mina toda e qualquer expectativa de segurança jurídica. Como o cidadão pode acreditar numa Justiça que faz da sua principal atividade um comércio nefasto? Se é assim na Bahia, por que será diferente no resto do Brasil? No Rio, o juiz Flávio Roberto de Souza foi flagrado dando uma voltinha no Porsche de Eike Batista e acabou sendo condenado por peculato. Mas quantos não cometem excessos e não são pegos ou acabam no aconchego de uma aposentadoria gorda?

Octávio Mangabeira foi eleito senador pela Bahia em 1958. Deixou a Câmara dos Deputados, onde chegou aos 25 anos e enfrentou uma carreira política de alto risco. Por duas vezes foi convidado e se retirar do Brasil; a primeira em 1930 e, a segunda, em 1937. Nesta última, depois de condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional de Getúlio Vargas, seu grande inimigo político, teve de partir para não mofar na cadeia.

Ex-vereador, deputado, ministro das Relações Exteriores e governador, Mangabeira se despediu da Câmara rumo ao Senado com um discurso emocionado, o qual permanece tremendamente atual. Disse que o Brasil padecia do mal da incompreensão, que nele estava contido todo o cerne da crise moral, financeira, política e social e arrematou: “É sobretudo de compreensão (…) que está precisando o país. Estamos sendo muito entregues a homens improvisados, que sobem de supetão e de improviso aos mais altos comandos da política e da vida pública”. Doutor Octávio, parece absurdo, mas nos últimos 60 anos subir de supetão e improviso virou profissão.

PS – Boas festas a todos. Estarei de volta depois do ano novo.

*Jornalista. Texto publicado originalmente no portal Poder360.