A voz do Papa. Por José Paulo Cavalcanti Filho

  Por José Paulo Cavalcanti Filho  –  Escritor, poeta,membro da Academia Pernambucana de Letras e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade

Na Fratelli Tutti, Francisco expõe a visão da igreja sobre a fraternidade e a amizade social. Entre os tópicos da encíclica, um (o 120) relevante para o Direito: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de toda a ordem ético-social”.

Mas como se traduziria, no mundo real, essa função social da propriedade?, eis a questão. Para começar se diga que a ideia de um fundamento ético para o exercício do direito de propriedade foi disseminado, no pensamento católico, ao início do século 20. Sobretudo pelos dois Jacques, Maritain e Mounier. Entendido à época, em uma dimensão íntima, como compromisso baseado na consciência individual. Mais amplamente, um serviço em benefício do bem comum.

Incorporada à Constituição alemã de Weimar (1919), por influência da social-democracia então no poder, acabou sem qualquer aplicação prática. Por serem fortes demais as objeções jurídicas  que lhe foram impostas. Acabou reconhecida, pela Justiça, como simples critério de interpretação. E aplicável, somente, aos meios de produção. Um princípio, apesar disso, insuficiente. Porque, segundo o (para Lênin) renegado Karl Kautsky, “a teoria marxista distingue meios de produção e terra” (A Origem do Cristianismo).

Entre as correntes teóricas que foram surgindo, ganhou destaque a ideia de um direito-função, em que a propriedade teria garantias só quando exercida em proveito da coletividade. Contra a tradição liberal dos direitos subjetivos, que os reconhece independentemente de qualquer controle de valor. Mas essa inovação logo foi abandonada. Basicamente, por conta da ausência de substância mínima em relação ao conteúdo que poderia configurar uma função “social”. Com a literatura jurídica da época o definindo como “vago”, “fluido”, “causador de embaraços tortuosos aos juristas”.

Talvez por conta de tantas dificuldades técnicas sua recepção, pelos países, foi (até agora) modestíssima. Está, por exemplo, na Constituição italiana de 1947. Algo paradoxal. Que, depois de 2 anos de debates candentes (basta ver as Atas das reuniões preparatórias), não houve acordo para ser incluído no Código Civil de 1941. Já na alemã, de 1949, acabou substituído pela ideia de uma propriedade vinculada apenas “ao bem comum”. Está na espanhola, de 1978. Mas não na portuguesa, de 1976. E sempre reconhecido, tão somente, como uma aspiração generosa. Sem qualquer regra prática de execução, em nenhum lugar.

Na Constituição brasileira de 1946, pela primeira vez entre nós, surge a ideia de que a propriedade deveria servir ao “bem estar social”. Passando a se falar, só na de 1967, em uma “função social da propriedade”. A redação foi mantida, na de 1988 (art. 5º, XXIII). Ocorre que a expressão “social”, nesta nova Constituição, tem conceito não unívoco. Basta ver que, nos seus 7 primeiros artigos, tem 8 significações muito diferenciadas. E não parece algo pronto. Tanto que surge no Estatuto da Cidade (2001). Para logo ser abandonado, no Código Civil (2002), substituído por uma “finalidade social”.

Fosse pouco, nosso Judiciário não revela um mesmo e único critério para aplicação em situações concretas. Prova é reconhecer que a simples preservação da natureza seria uma “função social da propriedade rural”. Mesmo quando não lhe dê, o proprietário, qualquer uso. Sem contar outros problemas. Se referência dessa função social for o tamanho do bem, uma grande propriedade poderia sempre ser expropriada. Mesmo quando produtiva (contra a legislação atual). Mas também o poderia ser um edifício, uma fábrica, um Shopping Center. Se for produtividade, pequenos espaços estariam em risco (contra a legislação atual). No campo e nas cidades. Se for qualidade no uso, então, as divergências serão amplíssimas. Sobram dúvidas, portanto, a serem necessariamente superadas antes de seu uso disseminado.

Para dar mínimos de dignidade ao conceito, quando for invocado, é preciso antes explicitar com clareza seus limites. E devemos produzir algum tipo de consenso mínimo em relação a seu conteúdo. Ainda hoje pouco maduro, para ser funcional. Por tudo, pois, os juristas vão ter que voltar a se debruçar sobre o tema. Porque a voz de Roma é demasiado importante para ser ignorada. Na tarefa comum, a todos e cada um, de construir uma sociedade mais fraterna.