O que Lampião pode nos ensinar sobre delações premiadas

 

O que Lampião pode nos ensinar sobre delações premiadas

Gabriel Souza

Lampião, Cangaceiro famoso na história do Brasil, muito ensina sobre ciências criminais. Na área da Criminologia, por exemplo, é profícuo analisar as teorias sociológicas do crime a partir do enredo de Virgulino. Mais ainda: ao ser morto, Lampião teve sua cabeça enviada para análise no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, como uma forma de subsidiar os estudos daqueles adeptos do positivismo criminológico (cujo maior expoente pátrio foi, justamente, o nominado médico Raimundo Nina Rodrigues).

Não é disso, porém, que trataremos aqui. Ao menos por enquanto. O enfoque, um tanto mais atual, é no controverso instituto da colaboração/delação premiada.

Sentar-se à mesa de negociatas com sujeitos que rotulador como criminosos não é postura recente do Estado, figurando como exemplo de tal ferramenta utilitarista a famosa passagem histórica de Tiradentes e seu delator, Joaquim Silvério dos Reis.

Poucos sabem, contudo, que por aqui, em nosso Sertão Veredas, nos idos da República Velha, Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião – também barganhou com o Estado, em um episódio verdadeiramente pedagógico para aqueles que desejam refletir as delações premiadas dos dias atuais.

Datava de 1926 quando o Ceará conheceu severo clima de violência e agitação política causado pela presença da Coluna Prestes nas proximidades de Juazeiro. Tratava-se de um grupo de combatentes revolucionários, composto majoritariamente por militares insurgentes sob o comando de Luís Carlos Prestes, que percorreu o interior do Brasil entre 1925 e 1927 visando reformas políticas e sociais, além da derrubada do então Presidente Artur Bernardes (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 99).

Temerosos com a possível recepção dos ideais reformistas propagados pela Coluna Prestes, as autoridades governamentais da localidade, juntamente com o Presidente Artur Bernardes, articularam as medidas cabíveis para a contenção da ameaça revolucionária. Floro Bartolomeu, político responsável por organizar a resistência, encontrou apoio na figura (mais que) religiosa de Padre Cícero, idealizador da aliança com Lampião. Surge então o dito acordo, conforme relato de Élise GRUNSPAN-JASMIN (2006, p. 100):

Lampião representava uma vantagem por muitas razões: conhecia a região por tê-la percorrido em todos os sentidos, estava familiarizado com o meio hostil e, além disso, seu grupo já se achava organizado como um pequeno exército. (…) Lampião iria ser utilizado como mercenário.

Em contrapartida, Lampião receberia, além de armas e munições, a patente de Capitão e a garantia de que não sofreria embaraços nas suas andanças pelo Nordeste (ARAÚJO, 2007, p. 85).

A trama negocial é cristalina aos olhos não ingênuos, demonstrando que o Estado pegou um atalho: era mais vantajoso fazer o acordo com os Cangaceiros, personagens que poderiam oferecer o resultado esperado – o combate – sem os prejuízos ínsitos ao aparelhamento de um exército. Os Cangaceiros desburocratizariam a resistência à Coluna Prestes, fazendo o que fosse preciso e à margem da legalidade, como era de se esperar.

Então o leitor indaga: “e a colaboração premiada?”.

No pico da famosa Operação Lava-Jato, uma reportagem do site Conjur noticiou que “Em depoimento, Cerveró diz que gravação de Delcídio foi ‘sugestão do procurador’”. Em linhas gerais, aventa-se a possibilidade, sempre questionada, de a gravação efetuada por Bernardo Cerveró – filho de Nestor – que incriminou sobremaneira o então Senador Delcídio do Amaral, ter ocorrido a partir da orientação de Membros do Ministério Público. Essa mesma suspeita de orientação voltou a ocorrer em outros episódios. Estaria o Parquet atuando como marionetista, cuja marionete é o mercenário, o delator, o sujeito que fará o trabalho de angariar provas?

Tecnicamente, as implicações dessa utilização do particular como longa manus do Estado torna(ria) prescindível o controle prévio de legalidade dos atos investigatórios por parte do Poder Judiciário, de forma que, se eventuais escutas ambientais ou interceptações telefônicas fossem realizadas por agentes estatais, estariam sujeitas à cláusula de reserva de jurisdição, ao passo que, quando concretizadas por particulares – os ditos colaboradores – interlocutores do diálogo gravado, não haveria tal necessidade.

A questão se explica facilmente quando lida através das lentes do eficientismo desvairado que assola essas grandes operações. O respeito à legalidade, com a exigência de autorização judicial devidamente fundamentada para que haja interceptações ou gravações, é visto como obstáculo à produtividade, exigindo mecanismos sub-reptícios que afastem garantias fundamentais, mais uma vez taxadas como fatores impeditivos ao alcance da justiça (leia-se condenação). Esquece-se, cotidianamente, que o ponto de legitimação da atuação estatal consiste justamente no respeito às regras do jogo (espírito do Estado de Direito) e no consequente apego aos meios até mesmo em detrimento dos fins.

A partir do preocupante indício levantado no depoimento de Nestor Cerveró e veiculado pelo Conjur, observa-se que o Estado, tal qual fez com os Cangaceiros no relato que inaugurou este escrito, negocia com mercenários, utilizando-os para driblar os entraves que o Estado de Direito impõe às atividades investigativas. A suposta atuação da parceria MPF/PF orientando os delatores na captura de gravações criou um atalho à margem da lei para a colheita de provas, escrevendo em tons modernos a trama de 1926: para burlar a legalidade que se impõe aos agentes estatais, utiliza-se os infratores oferecendo-lhes benefícios, seja na caatinga, seja no planalto central, na República de Curitiba ou outro rincão brasileiro.

Os discursos também se entrelaçam em outros aspectos, nas duas quadras históricas, no ontem e no hoje. No ontem, como narra Iaperi Araújo, se embrulhava a negociata com Virgulino no pomposo argumento de ser “uma oportunidade para tentar regenerar os cangaceiros a partir de uma ação cívica”; no hoje, parte da literatura comenta a delação premiada como uma demonstração valorosa de “arrependimento da ação criminosa, que também tem que ser levado em conta em face da aplicação da pena” (MENDRONI, 2015, p. 132.), demonstrando extremo apego ao paradigma católico-cristão de expiação das culpas a partir do arrependimento, o que até se justificava no Juazeiro de Padre Cícero, mas não pode sobreviver nos dias atuais. Quer-se, a todo custo, dizer que tais delações tem nota de justiça restaurativa… ledo engano.

Frente ao exposto, a história parece mesmo ser pendular. É de fatal ingenuidade ser darwiniano em ciências sociais, acreditando cegamente na evolução social de forma linear e progressista, quando na verdade o nosso processo “evolutivo” está sujeito a retrocessos. Parece que o pêndulo da história, nesse ponto, uniu 2016 e 1926, e como gritaram no início do século XX (O Nordeste, 09/03/1926p. 1), repito, aqui, um brado de angustia com os próximos passos do Estado marionetista.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Iaperi. A Cabeça do Rei: A morte e a morte de Virgulino Ferreira da Silva, Lampião. Natal: Nordeste Gráfica, 2007.

GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Lampião Senhor do sertão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

“Miseria e Vergonia! Lampeão continua no Juazeiro. Organiza-se um Batalhão sob seu Comando”, O Nordeste, 09/03/1926.

Fonte: Canal  Ciências  Criminais