CULTURA do CANCELAMENTO

Esse é o nome dado ao movimento de boicote a figuras públicas que dizem ou fazem algo ofensivo e inadmissível a um determinado grupo social. Por exemplo, um artista que faz declarações politicamente incorretas ou que se revela envolvido em escândalos de abuso sexual

O cancelamento enquanto fenômeno está alinhado ao pensamento neoliberal em que vivemos, onde pautamos as nossas escolhas pela mentalidade de consumo e da substituição. Podemos deixar de comprar produtos de uma empresa envolvida em um escândalo ambiental, assim como cortamos os vínculos com um familiar em função de seu posicionamento político.

Hoje, a mentalidade do cancelamento se expande para outros contextos, como nas escolas, onde um adolescente, em função de uma atitude controversa, pode ser cancelado em seu círculo social e para além dele. Escolhemos quem apoiar, decidimos quem seguir e permitimos que uns ou outros ocupem mais ou menos espaço em nossas vidas (e em nosso feed). No fim das contas, é sobre assumir o controle de quem merece o nosso amor, nossa atenção e nosso dinheiro. Na lógica implacável do descarte, convivemos sempre com a possibilidade de que dá pra tirar um para colocar outro melhor.

O impacto de uma tentativa de cancelamento pode levar o sujeito cancelado à uma condição depressiva e de isolamento, mas também pode gerar um efeito reverso. Um movimento coletivo de cancelamento é um ato performático que também gera destaque e atenção àquele que está sendo supostamente cancelado, ainda que a intenção original seja esvaziar o seu poder e sua relevância no campo social.

Em uma batalha de opiniões e ideologias, um sujeito que é linchado virtualmente pode inclusive ganhar muitos novos apoiadores que simplesmente se posicionam de forma contrária ao grupo que está realizando o linchamento. Tanto o cancelamento como o anti-cancelamento são fragmentos identitários que entregam uma sensação de pertencimento a um determinado grupo.

QUEM CANCELA QUEM

Por mais problemática que seja, a ideia de um cancelamento público estabelece um limite no que pode ser feito ou dito em sociedade. É sobre estabelecer uma fronteira e garantir que haja algum tipo de represália ou punição para quem passar desse ponto.

O estado, a igreja, a mídia de massa e outras instituições têm seu poder diluído hoje em uma sociedade parcialmente estruturada em rede, fazendo com que a grande massa, ela própria, aja como grande Pai regular e controlador. É como se alguém estivesse realmente precisando pôr ordem nessa bagunça, nem que seja o trending topics do twitter.

Mas uma crítica importante ao extremismo da cultura do cancelamento é que o sujeito que cancela pode muitas vezes cair em uma posição de suposta justiça divina, como se estivesse absolutamente ileso de qualquer deslize ou equívoco humano.

Apontamos a falha/falta de caráter do outro quando ela é explícita e insuportável para nós, mas raramente reconhecemos os nossos próprios preconceitos e intolerâncias. Ou seja, só cancelamos o outro mas nunca a nós mesmos. Então que tipo de julgamento irredutível é esse?

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ÓDIO E INTOLERÂNCIA

Cada história de cancelamento é um caso diferente. Algumas parecem mais justas e até necessárias. Outras parecem uma manifestação exagerada de ódio ou mesmo uma atitude infantil que só confirma a nossa atual dificuldade de estabelecer diálogos. Cancelar uma pessoa talvez seja lidar de forma muito superficial com a ponta do iceberg de uma questão social e cultural muito maior.

Os movimentos das minorias sociais (ou maiorias marginalizadas) defendem que “eles não passarão”. Machistas, racistas e LGBTfóbicos não passarão. Afinal essa passagem é de onde pra onde? “Não passar” significa uma advertência, uma multa ou uma sentença de morte? Qual é a penalidade e o nível de tolerância para lidar com a ignorância ou o erro do outro? Existe algum espaço para o perdão e o arrependimento? Existe tempo para o outro rever suas ações ou seu discurso e quem sabe converter a sua posição subjetiva?

Se o melhor pedido de desculpas é uma mudança de comportamento, o cancelamento pode não apenas tornar isso impossível, mas eliminar qualquer chance de que o caso se torne um exemplo público de transformação do sujeito.

Encontrar um bode expiatório para representar o grande mal de uma luta moral ou ideológica, por vezes, pode ser uma manobra coletiva cruel contra um único indivíduo. Ao mesmo tempo, é uma forma efetiva de criar uma marcação simbólica no tempo e na cultura. Heróis (e anti-heróis) sempre foram eternizados pelo que fizeram e pelo que foi feito com eles, e com isso modificamos e evoluímos o pensamento vigente para chegarmos em algo novo; ainda que alguns corpos e nomes precisem ser sacrificados no meio do caminho.

Fonte: Medium/ Lucas Liedke por Lucas Liedke