Impeachment preventivo

 

Por Arnaldo Santos*

Nesses tempos estranhos, como definiu o Ministro do STF, Marco Aurélio Melo, temos buscado na história e na sociologia política brasileira respostas para tentar entender em que momento, desde a formação do Estado, e da conquista da cidadania política pela democracia, saímos da trilha do desenvolvimento da ciência, da tecnologia, do pluralismo das ideias, da proteção do meio ambiente e dos povos das florestas, para percorrer as veredas do obscurantismo de estamos vivenciando.

Nessa reflexão retroagimos aos remotos tempos do voto a bico de pena, até chegar as atuais urnas eletrônicas, buscando identificar os fundamentos e as causas que nos fizeram perder o apreço pela República, e suas instituições, o zelo pela democracia, até chegarmos ao estádio de degenerescência moral, ética e civilizatória em que nos encontramos. Enquanto povo, “[…] ainda somos os mesmos como nossos pais”; já as elites dirigentes…!

Em um governo cercado de áulicos, que surge no vácuo dessa degradação e em meio ao deserto de homens de Estado, o conceito de corrupção foi relativizado, e tanto as rachadinhas, prática recorrente dos dois primeiros filhos do País, em quase duas décadas de mandatos na Câmara Municipal e na Assembleia do Rio de Janeiro, assim como os 89 mil reais depositados pelo Queiroz na conta da primeira dama, não significam nada, dizem eles, diante da corrupção praticada pelos antecessores. Tucanaram o bolsonarismo. Aqui vale ainda lembrar que mesmo com o influxo sofrido pela economia provocado pela COVID19, uma determinada loja de chocolate se revelou como atividade econômica mais rentável do País, em meio à crise.

Não bastassem todos esses, digamos, “pequenos” delitos, temos um Presidente da República sabidamente apoiador de uma usina de fake news, que agride jornalistas, persegue os veículos comunicação com ameaça pública de cassar a concessão pelo simples fato de exercerem o dever de informar a população, não cumpre o mais elementar dos protocolos sanitários de usar máscara, desrespeita a Nação diariamente com os seus xingamentos em rede nacional de televisão, bem como aos políticos e qualquer outra autoridade que ouse atravessar o seu caminho e contrariar suas vontades.

Um fato inaceitável que merece relevo, de compreensão difícil e até estarrecedor que nos impacta, inclusive a comunidade internacional, é o desprezo que esse governo demonstra pela vida das pessoas com seu viés eugênico (já são quase 130 mil mortos pelo coronavírus), e há quase seis meses o ministro da saúde continua interino).

Outra característica nem um pouco lisonjeira desse governo, e de grande desgaste para a imagem do País, com repercussão internacional, é o autoritarismo com que age o Presidente, atentando contra as instituições e a democracia, ignorando o princípio da separação entre os poderes, embora o Ministro Dias Toffoli, na despedida da presidência do STF, agindo como um vassalo, tenha afirmado em almoço no último dia 07 de setembro que, “[…] em todo o relacionamento que tive com o Presidente Bolsonaro, e com os seus Ministros, nunca vi da parte deles uma atitude contra a democracia”. (ver coluna do jornalista Magno Martins, em seu blog, de quarta feira dia 09/09)

Ante todas essas práticas malsãs, para dizer o mínimo, e do ácido processo de corrosão da República, pelo qual estamos passando, chego a pensar na existência de um plano contra a Pátria, embora nunca se tenha falado tanto em seu nome. Por isso não me surpreende que por decisão monocrática um magistrado tenha afastado um governador das suas funções, sem lhe assegurar o devido processo legal, o legítimo direito de defesa, sem que seus advogados tenham, sequer, tido acesso aos autos, como fez recentemente o Ministro Benedito Gonçalves, do (STJ), com o governador Wilson Witzel, cassando os quase 5 milhões de votos que lhe foram concedidos pelos cidadãos do Rio de Janeiro, e decretando o que o juiz cearense, Dr. Mantovanni Colares, chamou de “impeachment preventivo”.

É consabido, e aqui é imperioso lembrar, que a Constituição de 1988 assegurou aos estados o direito de escreverem suas constituições com base nos princípios estabelecidos na Carta Federal, e assim foi feito em todas as unidades subnacionais. A exemplo dos demais estados, o Rio de Janeiro aprovou a sua em 1989, e nela está escrito que “[…] governadores podem ser suspenso do cargo quando se tornarem réus – isto é, quando forem recebidas denúncias contra eles – em processos por crimes comuns ou de responsabilidade”; estes requisitos não existiam, quando se deu a decisão do magistrado, ignorando o que determina a Constituição estadual, e o pior, posteriormente confirmada pelo – STJ, com um só voto contrário, que foi o do ministro cearense, Napoleão Nunes Maia – frise-se.

O ministro Napoleão Nunes Maia Filho, o único a discordar da decisão, afirmou em sua crítica que aquela medida não deveria ter sido adotada por uma decisão individual do relator e o Tribunal deveria ter ouvido a defesa antes de decidir sobre o tema.

Em seu voto ele afirma, “[…] uma decretação de medida como essa deveria ser mais do que colegiada, devia ser prestigiada com a oitiva dos advogados para se prestigiar um mínimo de contraditório”, disse o ministro. “[…] Será que podemos falar em ampla defesa num julgamento que não comporta a fala do advogado?”, questionou.

Para entender esse exemplo incontestável de judicialização da política, e encontrar o fundamento para essa inusitada decisão, é preciso resgatar a história recente de algumas decisões do – STF, se investindo de poderes políticos impensáveis para uma corte superior, autoproclamada guardiã da Constituição.

Para elucidar e nos ajudar a entender o motivo dessa decisão deve ser lembrado que, em 2017, o STF deliberou sobre várias ações diretas de inconstitucionalidade, nas quais eram impugnados dispositivos das constituições de vários estados, inclusive do Rio de Janeiro, que concediam aos governadores as proteções que a Constituição federal confere ao presidente da República. Uma delas exigia a prévia autorização das assembleias legislativas para a abertura de processo de impeachment contra o governador.

No entendimento do STF, esses dispositivos eram inconstitucionais, pois constituem prerrogativa de chefe de Estado, e que, portanto, são exclusivos do Presidente da República. Para o professor Rafael Mafei, em artigo publicado pela revista Piauí, o “[…] o Supremo errou, pois não é um atributo de soberania que explica a proteção. Trata-se de uma salvaguarda contra perseguições judiciais que é tão sensata para presidentes quanto para governadores: é prerrogativa de chefia de governo, não de Estado, que decorre do princípio da separação de poderes, que inequivocamente se espelha ao nível dos estados. Se hoje o cuidado nos parece excessivo, o contexto de trinta anos atrás, quando foram feitas as constituições, o justificava: na ditadura militar de 1964-85, a perseguição a opositores políticos foi em boa medida judicializada”.

Nesses mesmos julgados, o Tribunal decidiu que o Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe o julgamento de governadores em ações penais, poderia também “dispor, fundamentadamente, sobre a aplicação de medidas cautelares penais, inclusive afastamento do cargo”. Não é um entendimento esdrúxulo, mas caberia ao menos a ressalva de que a cautelar de afastamento não estaria à disposição quando houvesse disciplina jurídica específica a regulamentando, como é o caso do presidente e de boa parte dos governadores, como assinala o professor Mafei em seu artigo.

Quando as cortes superiores de justiça de uma Nação, a pretexto de resguardar e fazer cumprir a Constituição, se investem do poder político, em flagrante usurpação de competências privativas do Poder Legislativo, não estão apenas judicializando a política, o que já seria muito grave, mas evidenciam que estão contaminadas pela influência autoritária que nos rege na atualidade, e revelam que, enquanto a população está infectada pelo coronavírus, a República está adoecida por múltiplas patologias, dentre elas a do autoritarismo e da ignorância de grande parte daqueles que governam, legislam e julgam.

Se o primado da lei deve ser o único condutor das decisões dos magistrados, como explicar esse conjunto de decisões do STF, os excessos e a forma arbitrária da operação lava jato, instalada na ex-república de Curitiba, em conluio com os Deltan Dallagnol, sob o império do rei posto Sérgio Moro?

*Jornalista, sociólogo e doutor em Ciências Políticas. Comentários e críticas para: arnaldosantos13@live.com.