Nelson Rodrigues disse à Folha como assassinato do irmão influenciou seu teatro

Autor de ‘Vestido de Noiva’ e outras peças célebres morreu há 40 anos

Em agosto de 1979, no saguão de um hotel na rua Augusta, em São Paulo, o dramaturgo Nelson Rodrigues conversou com Lourenço Diaféria, um dos principais repórteres naquela época.

O escritor pernambucano falou de infância, censura, amor, morte, fé, futebol e política —todos importantes elementos de sua biografia e da sua dramaturgia.

O teatro de Nelson Rodrigues pôs em cena no Brasil a tragédia do cotidiano. Sua peça”Vestido de Noiva” (1943) modernizou o teatro do país, com a ação que se desenrola em três planos simultânos para contar a realidade presente, o delírio e a memória de uma mulher atropelada.

Desde então, suas peças nunca deixaram de ser encenadas no Brasil.

Nos textos dele, temas banais, como ciúme e adultério, ganham o peso de uma tragédia grega com feições cariocas e suburbanas.

Um ano e meio depois da entrevista à Folha, em dezembro de 1980, Nelson Rodrigues morreu em razão de uma insuficiência vascular cerebral.

Quarenta anos após a morte de um dos nomes mais relevantes da história da dramaturgia do país, o texto de Diaféria é republicado na série Entrevistas Históricas, que integra os projetos especiais do centenário da Folha, a ser celebrado em fevereiro de 2021.

A melhor personagem de Nelson Rodrigues é o próprio Nelson Rodrigues. E, claro, seu mais fiel intérprete. Descrevê-lo fisicamente é tão dispensável como dar indicações sobre o nariz do Homem Inatural, figura que aparece na reacionária (perdão, revolucionária) tragédia em três anos, escrita por volta da Segunda Grande Guerra, e que hoje é uma espécie de marco lendário na dramaturgia brasileira: “Vestido de Noiva”.

“Nem a cara, nem o nome tem a ver com a nossa identidade profunda. Quase sempre o homem nasce, vive e morre sem ter contemplado jamais o seu rosto verdadeiro e sem ter jamais conhecido o seu nome eterno”. Como esse pensamento, a exemplo dos demais que aqui se seguem, tem a rubrica do dramaturgo, mais conveniente deixar que cada um o imagine como bem entenda e continue a dar-lhe os mais curiosos rótulos, mesmo porque estamos no século dos rótulos e embalagens.

Todavia, como o mesmo autor disse, certa vez, mais patético do que tudo, no ser humano, inclusive a nudez, é a cara —”Eu, se fosse banqueiro, emprestaria dinheiro pela cara. Tudo o que temos de sublime ou de vil está na cara”— pode-se acrescentar que o rosto de Nelson Rodrigues é o de um homem amargamente sofrido por dentro e por fora.

Uma criatura pátetica, bem humorada, paciente, alquebrada, que completando 67 anos neste mês de agosto, continua amarrada ao trabalho diário, de preferência de madrugada.

Embora acostumado ao sol de rachar catedrais, suportou sem queixa o frio excepcionalmente bárbaro de uma sexta-feira de inverno paulistano, no saguão de um hotel estrategicamente colocado a cem metros do espigão da Av. Paulista, região onde faz frio até em dia de calor.

Ali, acomodado num sofá de couro, ao lado de uma de suas seis irmãs, e anônimo como um perfeito intelectual brasileiro, Nelson Rodrigues respondeu a variadas perguntas, as quais deveriam ser gravadas.

Por uma falha do operador, de resto principiante, a fita rodou com hiatos e o recurso foi apelar também para muitas coisas que Nelson Rodrigues tem escrito e dito ao longo de 50 anos de ofício.

Isso explica, se não desculpa, a lamentável ausência de indicações de “risos”, que normalmente devem marcar as entrevistas ao vivo. É pena. Mas esclareça-se que, por coincidência, em nenhum momento alguém riu durante a entrevista. E também ninguém bebeu, bebeu naquele sentido: por dois motivos. Nelson Rodrigues só bebe água de bica e não estava com sede; e o entrevistador estava toureando uma enxaqueca, ou coisa parecida. Mas no mais foi tudo normal.

Nelson, você veio a São Paulo…
Para ver “A Falecida”, montada pelo Osmar Rodrigues Cruz.

Dizem que é a peça que você mais gosta. 
Não. Não é. Mas eu gosto de “A Falecida”. E também porque é uma peça que eu não vejo, deixe ver, há uns 20 anos. Só vi “A Falecida” na estreia. Depois nunca mais.

Viu algum ensaio? 
Vi o ensaio geral. Eu gosto de ir aos ensaios, dar palpites, conversar com os artistas e o diretor porque isso ajuda. Mas da “A Falecida” só vi o ensaio geral.

Que achou?
Perfeita. O Osmar fez uma “A Falecida” perfeita.

E o cenário. No original de sua peça, ela funciona sem cenário, só com cortinas, não é?
Não quer dizer nada. Isso não é uma traição. Ao contrário… Não é como quando o diretor estraçalha a obra do autor.

Já aconteceu com você?
Já. Não faz muito tempo, assassinaram miseravelmente “Álbum de Família” aqui em São Paulo. Isso não se faz. Uma coisa horrenda. Foi um erro total.

Você reparou que, na encenação do Osmar, “A Falecida” começa com um mau tempo de quinto ato de Rigoleto? Aquela chuva está ótima. Mas entretanto não há, entre as mulheres da peça, nenhuma gorda como uma viúva machadiana. Todas as mulheres são magras. Podia ter uma ou outra gordinha. 
Osmar é magistral. É uma peça pungente, patética.

Você escreveu numa ocasião que a indignação de um elenco não era um fenômeno novo para você. Que a maioria de seus intérpretes representa os seus textos com o maior desprazer e humilhação. Alguma vez vocês escreveu um texto pensando num determinado artista para interpretá-lo?
Eu fiz uma peça, “O Anti-Nelson Rodrigues”, para uma jovem atriz, a Leila Tavares. Ela estreou, representou, mas de vez em quando incluía na fala cacos [palavras ou expressões que não fazem parte do texto original]. Achei o fim da picada. A atriz, o ator têm de respeitar o autor. O caco é um absurdo, uma impossibilidade. É uma outra palavra, uma invenção. Hoje muita gente faz isso no teatro brasileiro.

Então a Derci Gonçalves jamais poderia entrar numa peça sua.
A Derci tem um talento muito popular, mas ela precisa ser livre porque se não for livre não será Derci.

Você frequenta teatro?
Vou, mas nem sempre. Não frequento muito os circuitos teatrais, as rodinhas, mas quando me convidam, vou…

E o teatro brasileiro hoje? 
Olhe, eu gosto do Plínio Marcos. Acho o Plínio Marcos um grande autor. O Plínio me agrada muito, me impressiona muito bem o seu teatro. É isso que eu posso dizer… Tem também o [Gianfrancesco] Guarnieri, mas com certa moderação. O Jorge Andrade…

E o teatro do Nelson Rodrigues? Onde fica o autobiográfico e onde fica a ficção nele?
Ambos se misturam. Meu teatro tem coisas, fatos autobiográficos, personagens, que revelam qualidades e defeitos meus, de conhecidos ou inimigos meus, pessoas que existiram. Coloco na boca de minhas personagens também pontos de vista meus, mas elas têm grande ação pessoal, elas falam de suas experiências, de seus ódios, seus amores. Algumas personagens minhas não pensam como eu, e eu não penso como elas.

Vou buscar a inspiração na própria vida, nas minhas lembranças e através de tudo que a memória guardou. Então aqui vai se projetando nos meus textos. Todos os meus textos dramáticos são uma meditação sobre o amor e sobre a morte. O meu teatro não seria o que é, nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se eu não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato do Roberto.

[Nota da Redação] No dia 26 de dezembro de 1929, uma mulher de voz doce dispara o revólver contra Roberto Rodrigues, pintor, escritor e ilustrador. Roberto era irmão de Nelson. A bala atravessa o ventre e fixa-se na espinha. Levado ao pronto-socorro, e operado ao anoitecer, Roberto morre três dias depois. Nelson assiste à cena do crime, às duas da tarde, na redação do jornal A Crítica. E mais tarde veria o corpo do irmão prestes a ser autopsiado no necrotério.

Ouvi não apenas o grito do ferido, mas o grito de quem morre. Não era a dor, era a morte. Ele sabia que ia morrer, eu também sabia. Todos corremos. Nunca mais me libertei de seu grito. E só eu, um dia, hei de morrer abraçado ao grito do meu irmão Roberto. Não há nudez mais humilhada, mais ofendida, mais ressentida do que a nudes da autópsia. Ah, meu deus, os nus violados no necrotério!

Nelson Rodrigues descobriu o teatro num vaudeville, “Uma Loucura de Gargalhadas em Três Atos”.
Só eu não ria. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir. No teatro, para não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas no segundo ato eu já achava que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: teatro e martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no intervalo, eu imaginei uma igreja. Ao sair do vaudeville, eu levava comigo todo um projeto dramático definitivo. Acabava de tocar o mistério profundíssimo do teatro.

Descobrira uma verdade súbita: a peça para rir, com essa destinação específica, é obscena e idiota.

Sua primeira peça, encenada em 1939, foi “A Mulher Sem Pecado”. Mas houve uma anterior, título esquecido, perdida para sempre. 
Joíre, o sexto filho da família, cabelo de fogo, esse irmão, que se uniria a mim como um gêmeo, ia morrer aos 21 anos, tuberculoso. Depois da Revolução de 1930e até 1935, eu e toda a minha família conhecemos uma miséria que só tem equivalente nos retirantes de Portinari. Eu e meu irmão Joíre passamos fome e a fome estourou nossos pulmões. Se me perguntarem por que fiquei doente, direi apenas: fome. Entendo por fome a soma de todas as privações. E mais: eu estava sem autoestima. Não tinha amor, nenhum amor, por mim mesmo. Me chamavam de filósofo, por causa do meu desleixo agressivo.

[Nota da Redação] Subiu para Campos de Jordão, onde foi tratar a tuberculose. “A tuberculose tinha então o nome parnasiano, lindo, nupcial, de peste branca”. Era abril e havia pneumotórax. O frio já começara em Campos de Jordão. Nelson subiu de bondinho que apanhou em Pindamonhangaba. Em 1935 estava internados nos sanatorinhos populares, dinheiro escassíssimo e prestígio do tipo “chegou aí um jornalista”. Uma moça debatia-se numa hemoptise: “Nunca imaginei que o sangue pudesse ser tão vermelho”. Os internador, com suas tosses, pediram a Nelson uma peça de teatro. Ele fez sua primeira experiência teatral. Uma comédia. 
Me pediram uma peça alegre. Eu fiz uma peça sem nenhuma seriedade. Os próprios doentes representaram. Gostaram, foi uma farra louca. O pessoal ria, a história era uma coisa sem nenhuma transcendência. Comecei com essa peça. Não me lembro nem mesmo do nome. Foi no sanatório de tuberculosos que tive a experiência pueril do teatro.

[Nota da Redação] Anos depois escreveria “Vestido de Noiva” com uma coragem desesperada e suicida, disposto a agredir o público. A primeira lauda da peça bateu na máquina na Redação de O Globo Juvenil, onde trabalhava. Sampaio, o secretário da revista, descobriu: “Fazendo teatro aqui?”. Nelson concluiu a peça em casa. “O nosso teatro era ainda o colete, as polainas, o sotaque lisboeta de Leopoldo Fróes”. 
Mas às vésperas da estreia da peça, uma loucura, tremi. Ninguém perdoaria a desfaçatez de ‘uma tragégia sem linguagem nobre’. ‘Como é que eu fui meter gíria numa tragédia!’, dizia a mim mesmo.

Começou a escrever teatro impressionado com o êxito de bilheteria de Raimundo Magalhães Jr. Quanto ao sucesso, já disse:
Ah, fui sim, uma das maiores vaidades deste país. Penso nos amigos e inimigos de meus textos. Sempre os tive, uns e outros, em generosa abundância. E ainda não sei, francamente, não sei, qual o mais pernicioso para o artista, se o que admira, se o que o nega. Ou por outra, sei. Eu devo muito, e, quase diria, eu devo tudo aos que me chamam por exemplo de cérebro doentio. Os admiradores quase provocaram a minha morte artística.

Eis a amarga verdade: durante algum tempo, eu só escrevia para os meus admiradores. Só os admiradores existiam. Só me interessava o elogio; e o elogio era o tóxico, o vício muito doce de vil. Pouco a pouco, o que me admiravam se tornaram meus irresistíveis co-autores. Quando percebi o perigo, o aviltamento, comecei a destruir com feroz humildade todas as admirações do meu caminho. As peças se dividem em interessantes e vitais. Todas as peças vitais pertencem ao teatro desagradável.

A partir de “Álbum de Família”, tornei-me um autor abominável. Por toda a parte passei a encontrar ex-admiradores. Me lembro da estreia de minha peça “Perdoa-me Por Me Traires”, no Theatro Municipal. Metada de plateia aplaudia, outra metade vaiava. Súbito, num dos camarotes, ergue-se o então vereador Wilson Lete Passos. Empunhava um revólver. Simplesmente queria caçar meu texto, a bala. Não creio que haja no drama, desde os gregos, outro exemplo de um original dramático quase fuzilado.

Quanto à reputação…
Que é reputação? O que nós chamamos reputação é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos. No Brasil é assim. Nada mais pornográfico, no Brasil, do que o ódio ou a admiração. Posso dizer, sem nenhuma pose, que para a minha sensibilidade autoral a verdadeira apoteose é a vaia.

Uma vez um repórter perguntou se eu me coinsiderava um realizado. Eu disse que não. Para mim, o único sujeito realizado é o Napoleão de hospício, que não tem nem Waterloo nem Santa Helena. Quando os críticos metem o pau, tanto melhor. A vaia impressa não deixa de ser uma compensação.

Não há autor, em toda a história dramática brasileira, que tenha sido tão censurado quanto eu. E não foi só o meu teatro. Não tive ninguém por mim ou tive pouquíssimos. As senhoras me diziam: “Eu queria que suas personagens fossem como todo mundo”. E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são como todo mundo: e daí a repulsa que provocaram. Todo mundo não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções. Portanto fui durante 20 anos o único autor obsceno do teatro brasileiro.

Jogo na cara o adultério. Há pessoas que não traem porque não encontram condições para trair. Não traem porque são covardes. Porque temem afrontar valores. O granfino assimila, incorpora o adultério. Não estou dizendo que todos sejam adúlteros. O público que conhecer certas experiências que ele não faz, que ele nem sempre faz, mas experiências que existem. Há uma fascinação pelo sujeito que mata, que morre. Está aí o jornal O Dia para provar. Ele põe o adultério na manchete, escracha a granfina.

Olhe, eu tinha sete anos de idade, fiz um ano na escola Prudente de Morais. Minha primeira professora chamava-se dona Amália Cristófaro. Geralmente tínhamos de escrever sobre estampas de vacas e de galinhas. Um dia dona Amália mandou a gente imaginar uma história. Houve dois premiados.

O outro menino escrever sobre o passeio de um rajá no seu elefante favorito. Eu fiz a história em que a mulher traía o matido, no fim o marido descobriu, esfaqueava a mulher. Minha historinha causou horror e foi premiada. Foi esse meu primeiro escândalo.

No começo, nas minhas primeiras peças, eu jogava a violência, sem palavrões. “Álbum de Família”, que é uma peça feroz, não tem palavrão. “Perdoa-me por me Traires” tem. “Beijo no Asfalto” foi a primeira peça em que usei palavrão. Passei a usá-lo quando as mulheres colocaram o palavrão em suas próprias bocas. Mas eu pessoalmente não digo palavrão.

Bom, voltando à censura. Eu, que já tive até título de livro cortado em jornal cinematográfico sob pretexto de que era publicidade, foi o caso do “Óbvio Ululante”, eu tive a peça “Álbum de Família” interditada durante 25 anos. O mesmo aconteceu com outras sete peças, que depois eu ia tirando da autoridade superior, insto é, do ministro da Justiça.

“Álbum de Família” é que demorou mais para ser liberada. Esse meu livro “O Casamento” foi liberado por medida judicial —interditado, liberado e, lá pelas tantas, novamente interditado… Agora você está dizendo que viu o livro numa banca de jornal, então ótimo. Nosso amigo, o Petrônio Portela, diz que está interessado numa censura classificatória, por idade. Acho essa solução formidável. Acho isso altamente positivo.

[Nota da Redação] Quando vem a São Paulo, Nelson Rodrigues prefere viajar de trem. Detesta avião. Abriu exceção, na inauguração do estádio do Morumbi, jogo São Paulo Futebol Clube vs. Porto, quando voou a convite e no mesmo aparelho do ex-presidente Garrastazu Médici (que Nelson Rodrigues uma vez chamou de ‘um homem de perfil de moeda, de cédula, de selo’). A ojeriza por avião: “Lá em cima não há paisagem; e, se não há paisagem, estamos fazendo a antiviagem.”

Gosta de paisagens, o que talvez o torna um pouco refratário a São Paulo, como explicou tempos atrás:
O horizonte paulista simplesmente não existe. Ou por outra: o horizonte paulista está a 5 m do sujeito e é uma parede.

Então você aqui, na rua Augusta, está achando a cidade horrível…
Não é que eu não goste. Eu brinco com São Paulo e até faço frases. Como aquela —”A pior forma de solidão é a companhia de um paulista” —ou essa outra— “O paulista não precisa da companhia de ninguém. O que ele precisa é de ganhar muito dinheiro”.

Agora tem o seguinte: eu brinco muito com São Paulo pelo simples fato de reconhecer uma série de qualidades fundamentais em São Paulo. É uma cidade fantástica, e cada vez mais fantástica.

Mudando um pouquinho de assunto. O Brasil é um país de ciclos. Teve o ciclo da cana, do café, do açucar, do possedismo, do ouro e, de vez em quando, tem o ciclo da violência. Estou me lembrando dos casais que iyvur contar do Flinto Mullher, por exemplo. Uma vez você escreveu que não existe nada mais antigo do que o passado recente. Nunca pensou em fazer assim uma espécie de painel, escrever um drama em três atos da política nacional?
Não. Eu retrato o brasileiro em suas paixões.

Nelson Rodrigues, pernambucano de Recife, foi para o Rio com 4 anos de idade. Sua infância:
Eu tive uma infância profunda, com uma série de experiências, de mágoas, que marcaram minha sensibilidade e ficaram dentro de mim. Embora eu fosse um garoto muito sensível, eu tinha procurado reagir com alegria e com a ideia de Deus, um Deus que salvasse, um Deus que me poupasse, que fosse meu amigo, fosse o meu pai, compreendeu?

Uma coisa que eu sofri muito, ainda criança, um grande abalo, foi a morte, quando eu tinha cinco anos, de uma criola, que era minha mãe preta. A Ana morreu de repente. Foi ter um parto, daí a coisa se complicou, naquele tempo um parto era um acontecimento sério, não tinha as facilidades de agora, a naturalidade de agora. E ela morreu. Ana tinha 28 anos. Ela saiu de casa, nem se despediu, saiu de casa para ter o filho e não voltou. Morreu.

Não voltou…
E o filho dela morreu também. Minha família morava diante do mar. O mar antes de ser paisagem e som, antes de ser concha, antes de ser espuma, o mar foi cheiro. O que me espante é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.

Minha mãe foi uma das mulheres mais belas de seu tempo. Uma Nossa Senhora. Meu pai era uma figura doce e, ao mesmo tempo, capaz de cóleras terríveis. Cóleras contra o mundo, mas trêmulo de ternura para a mulher e os filhos. Meu pai era gago. Daí, talvez a ternura que eu tenho por todos os gagos. Desde menino acho que o gago está certo e os outros errados. Meu pai morreu aos 44 anos e jamais me deu um vago e merecido cascudo.

Entrei para a escola aos seis anos. Era na rua Alegre, esquina com Maxwell, em Aldeia Campista. Eu estava absolutamente certo de que jamais aprenderia a ler e jamais aprenderia a escrever. Era pequenino e tinha cabeça grande. Minha família era pobre, muito pobre, pobre mesmo. Minha mãe tinha de ir para a cozinha e para o tanque. Éramos tão pobres que eu nem sempre levava merenda para a escola. Mas no primeiro dia e, como era o primeiro dia, levei uma banana.

Tinha 13 anos quando me iniciei no jornal A Manhã, como repórter policial. Sou da imprensa anterior ao copy-desk. O sujeito ganhava mal, para viver dependia de um vale utópico.

Mas tinha a compensação da glória. Quem redigia um atropelamento sentia-se um estilista. Meu primeiro trabalho como repórter foi o caso de uma amiga nossa, que traiu o marido, o marido pega a mulher e fuzila. Foi em São Cristóvão. Eu fiquei tomando notas. E o fotógrafo Morais fotografando. Minha primeira experiência jornalística.

Um ano depois, eu tinha então 14 anos, vivi minha primeira experiência sexual.

O copy-desk surgiu anos e anos depois. Começava a nova imprensa e os jornais foram atacados da grave doença da objetividade. O jornal nada mais concede à emoção e ao espanto. Na velha imprensa , as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy-desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos. Eu sou das poucas pessoas que ainda se espantam. Me pergunto se um dia não seremos todos cem milhões de copy-desks.

Consta que você trabalha muito. Continua trabalhando muito até hoje. 
Continuo. Faço às vezes três, quatro crônicas por dia. Os médicos mandaram que eu descanse dois dias por semana. Sábado e domingo. Então agora eu estou trabalhando de segunda a sexta. Durmo até meio-dia, 11h. Quando era garoto, levantava muito cedo, mas agora acordo tarde. E varo a madrugada. Trabalho mais durante a madrugada.

A crônica esportiva é à que você mais se dedica, não é?
A crônica esportiva e as outras crônicas que às vezes me pedem. O cronista esportivo passou a existir depois de Mário Filho. Antes de Mário Filho, o cronista esportivo era um ser patético, humilhado e ofendido. Quando ria, ou sorria, mostrava focos de cáries. Depois do Mário Filho, principalmente depois de sua entrevista com Marcos Mendonça, o cronista esportivo passou a existir profissionalmente. Os clássicos e as peladas invadiram o sagrado espaço da Primeira Página.

Falar em clássico, que você acha do Sócrates?
Apenas genialíssimo. Você é obrigado a reconhecer que nosso scracht é incrível. E o Sócrates, aquele calcanhar dele é monumental.

Melhor que o Zico?
A gente não deve dizer que um e outro são a mesma coisa. Agora, o Sócrates é genial.

E o presidente Figueiredo? 
O Figueiredo eu quero crer que o brasileiro Figueiredo é um carioca. Ele tem todas as virtudes, todos os delírios, toda a explosão vital carioca.

Uma das coisas que todo mundo sabe é que Nelson Rodrigues não gosta de viajar. Nunca saiu do Brasil, só escreve e fala em português. Nisso ele é um radical mesmo. 
Eu acho estranho e vagamento doloroso, pungente, uma viagem. Minha família toda viajou. Eu, como redator de esportes, tinha oportunidade de fazer um número imenso de viagens, como qualquer colega faz. Mas nunca quis.

Moro na avenida Atlântica, vivo meu pedaço, sou reconhecido na rua, tenho minha turma. Eu curto muito o que chamo desconhecido íntimo. Sujeito que me vê na rua “Nelson!”, e vem me abraçar, “O Fluminense está mal!”. E coisas assim. Uma rua ainda mais obscura ainda mais secundária tem todos os tipos e todas as paixões. Nós somos um pouco nossa rua, nosso bairro, nossa cidade, nossos amigos.

Se você vai para fora e se afasta da sua turma, do seu clima, do seu ambiente, da multidão que o rodeia e não fala a língua dos outros, não entende a língua dos outros, não conhece ninguém, você sente que a sua existência perde muito de si mesma.

O que fascina na viagem é a distância. Quando se fala em viagem, o sujeito pensa em certas paisagens ideais, que a imbecilidade turística consagrou. Veneza, com seu lírico mau cheiro. Por que ir a Veneza se a nossa praia de Ramos tem um odor equivalente? A partir do Méier eu começo a ter saudades do Brasil.

Muitos amigos?
Alguns. Porém bons amigos. O Hélio Pellegrino, que é um gênio verbal, um verdadeiro Dante, o João Cabral de Melo Neto. O Permínio Ásfora, o Felipe, o doutor Stans Murad, o…

Doutor Stans, o cardiologista?
Isso mesmo. O Otto [Lara Resende], outro gênio verbal, acho que fala ainda melhor do que escreve.

Falando do doutor Stans Murad, você teve quatro enfartos?
Dois. Tive foram quatro operações com hemorragias inacreditáveis. Uma de úlcera. Outra de aneurismo abdominal…

Ficou em estado de coma…
Fiquei em coma perto de 15 dias. Uma experiência terrível. Me lembro que pessoas que já haviam morrido, parentes mortos, estou vendo, eles se assentam no canto do quarto e ficam me olhando… Ouvi o Lacerda fazendo discurso. Ouvia-o falando. Ele estava morto. Muita gente que morrera apareceu no meu quarto. Era um quarto de sofrimento incrível. Eu sofri barbaramente.

E quando voltou a si, que sensação?
Espanto, surpresa, clarividência. Eu enxergava mais que normalmente. Porque eu estava do outro lado. Eu estava muito mais pra lá do que pra cá…

Para Nelson Rodrigues, vivemos hoje uma época essencialmente cardiológica:
Hoje ninguém é mais importante que o cardiologista. A moda do analista está passando, assim como passou o fraque, o espartilho, o charleston. De mais a mais, o cardiologista não tem, como analista, dez anos para não curar o doente. Não há no enfarte a paciência das neuroses.

Sobre o doutor Murad:
Se há um homem bom, rigorosamente bom, é exatamente o doutor Murad. Bom a toda hora e em toda parte. Bom para todos. Os idiotas da objetividade dizem que não há milagre. Mas o médico tipo Murad faz muitas vezes coisa que são milagres. É como se Deus pousasse a mão no médico ou no doente. E então o doente acorda de sua morte, como na ressurreição de Lázaro.

Aquele que não acredita na ressurreição de Lázaro não deve tentar a medicina. O cardiologista, então, que lida com a morte cara a cara, precisa admitir todas as possibilidades e mais esta: o milagre.

O doutor Murad lhe salvou a vida duas vezes. Na primeira delas, Nelson Rodrigues saiu diretamente do estádio Mário Filho (Maracanã), na base das injeções, carregado para casa e daí para o hospital. Duas úlceras sangrando. A seguir, broncopneumonia, parada respiratória, e enfarte. Foi dado como tecnicamente morto. 
Chegaram às Redações de jornais as notícias de minha morte. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.

[Nota da Redação] Um mês depois, outro enfarte.
Foi numa das vezes em que estava desenganado pelos médicos (mas ainda não completamente esgotados os recursos dos milagres) que duas pessoas escreveram palavras que comoveram profundamente Nelson Rodrigues: o doutor Alceu e o bispo dom Helder.
Recuperado, Nelson Rodrigues nunca mais voltar a pensar em atacar aquelas duas figuras que, durante longo tempo, fizeram parte de seu elenco de alvos-vivos.

A propósito, qual é a opinião de Nelson Rodrigues sobre a anistia? [Ele fez uma pausa. Sob o paletó, a malha de lã e a camisa esporte fechada no colarinho.] 
Não me satisfaz. A anistia, uma vez feita, tem de ser máxima, total, irrestrita. Ou então não se faz. Eu escrevi, fiz na televisão, na imprensa, fiz em toda parte, apelos ao presidente, pedindo a ele que soltasse meu filho e soltasse os que estão escarcerados por motivos políticos. Enfim, que se fizesse uma anistia indiscutível… Fiz um grande movimento individual para que a anistia representa um gesto realmente maior.

E alguém respondeu a seus apelos?
Não.

Eu acho que existe uma insensibilidade muito grande na maneira como os apelos são recebidos… E o relacionamento com seu filho?
Muito bom. Inteiramente bom. Meu relacionamento com meu filho… Toda vez que vou visitá-lo, ele me beija numa face, depois na outra face, e eu beijo numa face, e depois noutra face. É o melhor relacionamento, compreendeu?

Uma vez Nelson Rodrigues escreveu que nada diminui a angústia humana. Escreveu também:

Não há amor que não seja eterno. Os que acabam não tem nada a ver com amor. O amor continua para além da vida e para além da morte. A simples esperança do amor eterno impede que o homem apodreça à nossa vista.”

Casou-se com 27 anos. Completou bodas de prata. Separou-se. E voltou outra vez para a mesma mulher. Elza.
Na peça “A Falecida”, há um momento em que Timbira, o papa-defuntos, depois de embolsar uma gorjeta dum bicheiro, diz que a salvação do Brasil está no jogo do bicho. E que o ministro da Fazenda devia ser um banqueiro de jogatina (a pela, é bom que se diga, estreou pela primeira vez em junho de 1953, o que desculpa Timbira). Nelson Rodrigues não joga no bicho. Mas semanalmente, com seu irmão Augusto e mais três colegas de O Globo, arrisca meio barão, ou pouco mais, na loteca. Nelson Rodrigues já fez treze pontos várias vezes. 
Várias vezes, porém sempre ganhando miseravelmente pouco. Continuo vivendo do trabalho de escritor, dos direitos autorais, das crônicas dos livros, das peças de teatro e, agora e principalmente, do cinema. Tenho feito cinema. “A Dama da Lotação” deu uma bilheteria louca.

Quer dizer que enricou?
Não. Se fosse rico, ainda que medianamente rico, escreveria apenas romances e peças, ou talvez fizesse coisas para o cinema.

E os editores?
Me pagam. Minha irmã Helena cuida disso. Mas sou um pobre nato, um pobre vocacional. E tenho uma família grande para sustentar.

Há cinco ou oito anos, Nelson Rodrigues dizia que seu anticomunismo começou quando era garoto de calças curtas. Tornou-se de horror pelo comunismo e, meio século depois, continuava o mesmo. Ou por outra, muito maior. Considerava-se o colunista que se repete com um límpido impudor.

“Não tenho o menor escrúpulo de usar duzentas, trezentas vezes, a mesma metáfora. Por que não insistir numa imagem bem sucedida? Aprendi que as coisas ditas uma vez, e só uma vez, morrem inéditas.”

Disse também:

“O diálogo entre os brasileiros é sempre, fatalmente, um monólogo. O interlocutor não existe.”

E disse, em ano impreciso:

“O Brasil é um país que exige mais, muito mais, do que a meia coragem das meias soluções. E nós somos mestres em resolver as nossas urgências com adiamentos.”

Também é dele:

O que me dá um certo pânico do adoelscentes é a minha própria adolescência. Eu fui um menino tenso, patético, um menino que vivia de paroxismo em paroxismo. Eu vejo os jovens montados, cavalgados por velhos e só por velhos. E suas palavras, seus ódios, seus punhos cerrados, seus palavrões, são apócrifos”

E o que você acha do Lula?
Quem?

Lula, de São Bernardo do Campo. 
O Lula me deixa meditativo. Ele está me devendo mais… mais fatos, para eu chegar a uma conclusão. Eu acho, eu acredito, que um Napoleão, para ser Napoleão, é Napoleão. Mas eu acho que falta ao Lula, para ser Napoleão, uma outra medida napoleônica, compreendeu? Para um sujeito influir num país de cento e dez milhões de pessoas, por melhor que seja o sujeito, ele precisa ter um pouco de Napoelão…

Mas você acha que existe algum Napoleão na praça?
Toda vez que a História precisa de um Napoleão, ele aparece.

E quanto à Academia Brasileira de Letras?
Não sou de brigar com ninguém. Um grupo queria me levar para lá, mas tinha o Otto Lara Rezende, agora que o Otto já está lá, talvez, talvez…

Ele mesmo se reconhece um ser polêmico, mas daquelas criaturas que se vendem por um bom dia, um ‘oba’, um olá. Segundo ele, hoje tudo se faz para degradar a vida e, pior, para degradar a morte. Na hipótese de uma guerra nuclear, acho que se perderia muito, muito pouco.

Mas tem uma puerilidade encantada, a que já se referiu uma vez:

“Sem essa puerilidade encantada, os velhos seríamos múmias inteiramente gagás. Digo o mesmo que esse pouco de infância, ou melhor dizendo, de juventude, é um íntimo, um esplêndido tesouro.”

“Já me chamaram de flor de obsessão. Não protesto. Não faço nenhum mistério dos meus defeitos. Eu os tenho e os prezo. Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas. Só os imbecis não as têm. Se eu fosse mais importante e entrasse numa enciclopédia, gostaria que fosse assim: Nelson Rodrigues —autor brasileiro, também conhecido como flor da obsessão, etc., etc.”

A impressão que esse senhor me deixa, numa sexta-feira fria, é de que ele vive a saudade de sua infância com gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia.

Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.