Artigo: Os “neovândalos” e a nossa história

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Thaís GarciaPor Thaís Garcia

Vândalos são como hienas, atacam sempre em bandos. Era difícil combater vândalos antigos, e atualmente, mais difícil ainda combater os “neo-vândalos”. Eles entram em êxtase e começam a destruir tudo o que veem pela frente, como bons bárbaros. Quando o líder do bando é preso, um novo líder é escolhido para comandar a bagunça.

Em 8 de junho, um blogueiro chamado Breno Laerte postou no Twitter um filme de neo-vândalos em Bristol, no Reino Unido, derrubando estátuas de monumentos públicos da história britânica. No mesmo post, ele publica a foto de uma estátua da Princesa Isabel no Rio de Janeiro, supostamente instigando o leitor a pensar na possibilidade de – como em Bristol – derrubar o monumento que nos leva a recordar nossa história e a importância da princesa para abolir a escravidão no Brasil.

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Josh Begley

Esses atos de destruição de movimentos de esquerda, que estão ocorrendo principalmente nos EUA, França e Reino Unido, usam o “racismo contra negros” como pretexto para criar o caos e trazer a destruição.

Em comentários publicados no tweet de Laerte, seguidores reagem sugerindo a derrubada de outros monumentos, postando mais fotos de estátuas que representam a história do Brasil, como a de Dom Pedro e de Duque de Caxias.

Um dos métodos que a esquerda usa para criar sua narrativa e mudar a história é apagar o passado, e destruir estátuas está incluído no “pacote”.

O pensador Edmund Burke disse um dia: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Por isso, apesar de a data 13 de maio ter passado, quero levar o leitor a relembrar quem foi Princesa Isabel.

No último 13 de maio, Laércio Fidelis Dias – professor e doutor em Antropologia Social  e Diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro (DPA) da Fundação Cultural Palmares (FCP) – escreveu um artigo que nos ajuda a lembrar da importante atuação da Princesa Isabel do Brasil.

Em seguida, o artigo de Laércio F. Dias, publicado pela Fundação Cultural Palmares.

Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil?

Laércio Fidelis Dias*

Em 13 de maio de 1888, a escravidão no Brasil foi abolida quando a princesa Isabel, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon-Duas Sicílias e Bragança (1846 – 1921), seu nome completo, sancionou a Lei Áurea, oficialmente designada Lei Imperial n.º 3.353. Áurea deriva do latim Aurum, que significa feito de ouro, e é uma forma de expressar o valor e a magnificência da lei que pôs fim à desumana forma de exploração humana, que perdurou no país por aproximadamente três séculos.

De um ponto de vista legal, a abolição da escravatura no Brasil se deu de forma graduação a partir da segunda metade do século XIX. Em 04 de setembro de 1850, foi promulgada a Lei Euzebio de Queiroz, Lei nº 581, que vetava a entrada de escravos africanos no Brasil, além de criminalizar quem a infringisse.

Em 28 de setembro de 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre, Lei nº 2.040, que declarava livres todos os filhos de mulher escrava nascidos no Brasil a partir daquela data.

Em 28 de setembro de 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, Lei n.º 3.270, que garantiu a liberdade dos escravos com pelo menos 60 anos de idade. Esta Lei impunha ao ex-senhor a obrigação de indenizar o ex-escravo. Porém, essa indenização deveria ser ressarcida pelo liberto que, por três anos, ou, até completar 65 anos de idade, trabalharia para seu ex-proprietário.

É, portanto, nesse contexto gradual de implementação das leis abolicionistas resultantes de pressões internas e externas, da diminuição do número de escravos por causa Lei Euzebio de Queiroz, Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários, bem como as insurreições de escravos, especialmente entre os chamados quilombos de resistência, “quilomborompimento”, que tendiam a servir de esconderijo, que emerge a Lei Áurea. Lembrar o 13 de maio é sempre um modo de deixar vivo na memória o caráter desumano da escravidão como forma de exploração do trabalho, ainda que, atualmente, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, continuem a existir formas de trabalho semelhantes à escravidão.

Por que e como lembrar, em 13 de maio, a Princesa Imperial do Brasil, quando da assinatura da Lei Áurea? Apenas como a Regente do Império, meramente figurativa da sanção da Lei, que, por força da conjuntura de sua 3ª Regência não lhe restou outra saída senão rubricar o dispositivo legal? Carta inédita da Princesa, de 11 de agosto de 1889, endereçada a Visconde de Santa Victoria, o Visconde de Mauá (1813 – 1889), encontrada num acervo de 3 mil documentos do Memorial de Visconde de Mauá, conta-nos outra história, e revela uma Princesa que queria não apenas pôr fim ao regime escravista, mas indenizar os escravos libertos e assentá-los em terras capazes de produzir seu sustento após promulgada a Lei Áurea.

Num dos trechos da carta, escreve a Princesa: “Fui informada por papai [Dom Pedro II] que me collocou a par da intenção e do envio dos fundos de seo Banco [Banco Mauá] em forma de doação como indenização aos ex-escravos libertos em 13 de maio do anno passado, e o sigilo que o Snr. pidio ao prezidente do gabinete para não provocar maior reacção violenta dos escravocratas.”

Em outro trecho, o projeto da monarquia de que os libertos pudessem prover seus sustentos a partir de terras próprias não poderia ser mais explícito:

“Com os fundos doados teremos oportunidade de collocar estes exescravos, agora livres, em terras suas próprias trabalhando na agricultura e na pecuária e dellas tirando seos próprios proventos”.

De mesmo modo, Princesa Isabel tinha plena consciência dos riscos que corria o regime, caso estes planos chegassem aos ouvidos de escravocratas e militares: “Deos nos proteja si os escravocratas e militares saibam deste nosso negócio pois seria o fim do actual governo e mesmo do mpério e da caza de Bragança no Brazil”.

É certo que não se faz história com apenas uma carta de quatro páginas. Mas uma carta, assim como um artefato arqueológico, como um dado etnográfico, pode ser a porta para muitas perguntas que ensejam pesquisas reveladoras, neste caso, reveladoras da história do Brasil, na segunda metade do século XIX; que, obviamente, influenciou e moldou o país no qual vivemos hoje.

Se soa ingênua uma história da abolição da escravatura no Brasil que que constrói uma imagem idílica da Princesa como a única responsável pelo fim da escravidão, uma história que lhe confere um papel de ostracismo, soa igualmente ingênua. As quatro páginas desta carta, endereçada a Visconde de Mauá, sem dúvida ajuda a suavizar a oposição entre uma visão da Princesa romanceada e outra visão que a trata como farsa e engodo.

A carta revela a boa relação da Princesa com abolicionistas como Joaquim Nabuco e André Rebouças, que também possuíam relações amistosas com o Quilombo do Leblon, localizado na Zona Sul do Rio de

Janeiro. Este era um “quilombo abolicionista”, cujas lideranças eram conhecidas, os habitantes possuíam documentação civil em dia e eram politicamente bem articulados. Neste sentido, Princesa Isabel mantinha amizades com amigos de quilombolas.

É preciso não deixar de informar que, em 1871, quando já se discutia na Assembleia Geral do Império a Lei do Vente Livre, e Visconde do Rio Branco era Presidente do Conselho de Ministros, a Princesa Imperial do Brasil, Dona Isabel de Bragança, em sua primeira regência, empenhava-se junto aos ministros para que a lei fosse aprovada. No dia da aprovação da lei, em 28 de setembro de 1871, à porta do Senado Imperial, Visconde do Rio Branco foi saudado efusivamente pelo feito. A Princesa Imperial Regente estava presente e, indo ao encontro de Rio Branco, disse com emoção e radiante:

– Bravíssimo, Visconde! Que sua vitória seja o exemplo mais belo em que nossos homens de Estado se devem mirar.

– Perdão, Princesa. Se venci, é porque tive o apoio em Vossa Alteza e em meus luminosos pares legislativos. Logo, o mérito é menos meu que da ilustre Regente e dos insignes representantes do País.

E, em 1886, no domingo de Páscoa, no Palácio de Cristal de Petrópolis, presente de Conde D´Eu (1842 – 1922) à Princesa, sua esposa, por ocasião, em 1884, das comemorações de seus 20 anos de casamento, foi organizada um uma “festa da liberdade”, quando 503 cartas de alforrias foram entregues aos últimos escravos em Petrópolis/RJ, selando o fim da escravidão na cidade.

Portanto, para concluir, e responder à pergunta que intitula o artigo, por que lembrar Princesa Isabel no 13 de maio, creio que, antes de tudo, por ter assinado a lei e colocado fim à escravidão. E, também, pela preocupação sincera e empenho ativo na libertação, indenização e assentamento dos escravos. Assim, a conhecida frase da Princesa de que “Mil tronos eu tivesse, mil tronos eu daria para libertar os escravos”, ganha cores ainda mais reais. A história que se seguiu e o preço pago pela promulgação da Lei Áurea são conhecidos: fim do regime monárquico; proclamação da república; exílio da família imperial; e, o que não raro se esquece, o fato do regime que se que seguiu nunca ter entregado o que sua propaganda prometera: a ampliação da participação política. A ausência de governos representativos de seus cidadãos, marca essencial de nossa república, deixou profundas cicatrizes na nação brasileira que podem ser vistas até os dias que correm.

Imagem 1: Documento original assinado em 1888.

Fonte: https://www12.senado.leg.br/institucional/arquivo/documentosapenas/lei-aurea

Imagem 2: Princesa Imperial do Brasil, Dona Isabel de Bragança.

Fonte: Casa Imperial do Brasil, 2017.

Imagem 3: Senhor João Paulino Barbosa, Barbacena/MG, neto de escravos, trouxe 125 rosas coloridas para depositar aos pés do túmulo da Redentora, em Petrópolis/RJ.

Créditos: Tatiana Vils e Lailinha Vils do Instituto Cultural D. Isabel I – IDII, 2013.

 (*) Diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro (DPA) da Fundação Cultural Palmares (FCP)

Doutor em Antropologia Social (USP)

Bibliografia
CASA IMPERIAL DO BRASIL. “A Princesa Imperial na Luta Pela Abolição”.
(On-line). PRÓ-MONARQUIA. Disponível: https://www.facebook.com/1504551259781459/posts/2673555079547732/?app =fbl, (07 de maio de 2020).
CARVALHO, José Murilo. O pecado original da República. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2017.
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. “50 anos do Museu
Imperial, 150 anos de Petrópolis”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Anuário do Museu Imperial). Museu Imperial: Petrópolis, 1995.
NEDEHF, Eduardo André Chaves. Memorial de Visconde de Mauá: Arquivo e Memória. Universidade de Fortaleza: Fortaleza, 2006.
REVISTA NOSSA HISTÓRIA, Ano 3/nº 31 – Editora Vera Cruz.
SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura.
Companhia das letras: São Paulo, 2003.
XAVIER, Leopoldo Bibiano. Revivendo o Brasil-Império. Artpress: São Paulo, 1991.