Sem justiça, sem paz – Editorial

Protesto contra truculência policial nos EUA levanta questões válidas no Brasil

As manifestações que eclodem nos EUA, motivadas pelo assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial branco, na cidade de Minneapolis, parecem transcender, em sua extensão e em algumas características, os contornos de protestos anteriores contra o racismo naquele país.

A brutalidade física e simbólica da cena na qual o agente Derek Chauvin sufoca com o joelho, por 9 minutos, uma pessoa que estava sob controle e dizia não ter condições de respirar despertou revolta entre americanos de todas as colorações raciais —e catalisou um sentimento latente de exaustão e descontentamento no país.

A imediata ocupação das ruas por parte de manifestantes sem uma coordenação centralizada discernível fez lembrar os movimentos que irromperam no Chile e em outros países da região em 2019.

O slogan “De quem é a rua? A rua é nossa”, repetido nos Estados Unidos, revela uma índole até certo ponto análoga a de seus equivalentes latino-americanos.

A covardia monstruosa do policial e a desproporção da força por ele utilizada talvez tenham encenado também o drama das desigualdades presentes em uma sociedade que, opulenta em sua economia, vem se tornando crescentemente iníqua nas últimas décadas.

Como se tornou comum em protestos contemporâneos, o recurso a atos violentos, que não raro descambam para o vandalismo condenável e politicamente ineficaz, se fez presente nas demonstrações, em contraste com a linha pacifista consagrada por Martin Luther King, o campeão da luta pelos direitos civis e de negros.

Os tempos são outros todavia, e é inegável que, desde aquelas conquistas basilares da década de 1960, a violência policial contra a população negra —e também latina, cumpre lembrar— jamais cessou.

Quanto a esse aspecto, reabre-se nos EUA o debate acerca dos mecanismos legais de institucionalização de tal truculência —a doutrina da “imunidade qualificada”, há anos sistematizada em decisões da Suprema Corte, que torna extremamente difícil levar a termo tentativas de condenar judicialmente agentes das polícias.

Trata-se da versão norte-americana para um tipo de proteção aos excessos que no Brasil ganhou o nome de “excludente de ilicitude”, dispositivo proposto sem sucesso em pacote legislativo do ex-ministro da Justiça Sergio Moro.

O fato de que essa assim chamada “autorização para matar” tenha sido rejeitada pelo Congresso não deixa, infelizmente, o Brasil em melhor situação. Aqui, com leis ou sem leis, banalizou-se, em proporções dramáticas, a rotina da brutalidade policial impune sobre as populações pobres e negras.

Os protestos da sociedade, embora existam, são pontuais e minoritários.

Nesse contexto, seria sem dúvida valioso para os dois países refletirem sobre um outro slogan adotado pelos manifestantes americanos: “Sem justiça, não há paz” (“No justice, no peace”).

Folha de São Paulo