‘Mulheres e animais são sempre assuntos subversivos’, diz Nobel de Literatura Olga Tokarczuk

Em entrevista, escritora admite que ‘foi bom viver a uma distância silenciosa do mundo’, mas lamenta desigualdades acirradas pela pandemia e uso que governos autoritários estão fazendo da crise.

Por Ruan de Sousa Gabriel

Vencedora do Nobel de Literatura de 2018 , anunciado apenas no ano passado, após o prêmio ter sido cancelado por escândalo de abusos sexuais , a escritora polonesa Olga Tokarczuk admite que sentiu certo alívio durante a quarentena.
— Tenho até vergonha de dizer, mas foi bom viver a uma distância silenciosa do mundo — diz a autora, que mora a 350km de Varsóvia, em Wroc?aw, cidadezinha parecida com aquela onde vive Janina Dusheiko, a mística narradora de “Sobre os ossos dos mortos”, romance lançado por aqui em novembro.

Janina é astróloga, defensora dos animais e tradutora do poeta inglês William Blake (1757-1827) – o título do livro, aliás, é emprestado de um verso dele. Quando caçadores aparecem mortos, ela tenta convencer a polícia de que eles foram assassinados por animais vingativos. Ainda este ano, a Todavia lança o único livro infantil de Olga, “A alma perdida”. Para o ano que vem, promete o romance “Viagens”.
Crítica do governo de extrema-direita da Polônia , ela lamenta que governos autoritários se sirvam do medo gerado pela pandemia para ganhar mais poder. De seu país, onde o desconfiamento começou vem sendo feito progressivamente desde o início do mês, ela conceceu a seguinte entrevista ao GLOBO (traduzida por Gabriel Borowski, professor de português na Universidade Jaguelônica, na Polônia).

Como você passou a quarentena?

A epidemia pouco mudou minha rotina. Minha existência se divide em dois modos: extrovertido, quando viajo para divulgar um livro, e introvertido, quando escrevo em casa. Passei inteiramente ao modo caseiro e, para além disso, tudo estava quase normal. Descobri minha introversão e tenho até vergonha de dizer, mas foi bom viver a uma distância silenciosa do mundo. Tenho também uma cachorra velha e doente. Finalmente pude dedicar mais tempo a ela.

Você aproveitou a quarentena para trabalhar em algum projeto?

No início, pensei que ia ler, escrever, ordenar a papelada. Não foi tão fácil. Psicologicamente, estamos tensos e cheios de medo. Não foram férias, mas um estranho estado de suspensão. Foi difícil me concentrar e trabalhar como se nada estivesse acontecendo. Não acho que eu saia desta crise com um livro pronto.

Em um ensaio publicado na revista “The New Yorker”, você descreveu o fechamento das fronteiras nacionais como “a maior derrota deste tempo vago”.

Você teme que a pandemia traga consequências políticas negativas?

Governos autoritários estão satisfeitos com o maior controle social e a proibição de reuniões. Eles se servem do medo para ganhar mais poder. O exemplo mais inquietante é, para mim, o sistema de vigilância introduzido na China em nome da sua segurança e da ordem social. Na Polônia, no meio da confusão epidêmica, suspenderam as eleições. Os políticos aproveitam a pandemia para o seu próprio benefício em vez de buscarem soluções para os problemas que estão aumentando com o desemprego e a recessão.

Acredita que haverá também consequências positivas?

A pandemia com certeza vai acelerar as mudanças e talvez nos faça dar uma espécie de salto temporal, com a concretização de ideias como renda básica de cidadania, transição para a energia verde, teletrabalho, transações não monetárias. Ao mesmo tempo, a pandemia levou à produção de milhões de toneladas do lixo plástico. Nossas máscaras e luvas vão se juntar aos despejos que já flutuam nos oceanos. Também estou apreensiva porque o ensino à distância deflagrou as desigualdades no acesso à educação. É o problema mais doloroso.
Janina acredita em astrologia. E você?

Não é questão de acreditar ou não. A astrologia é muito mais antiga do que a ciência. Enquanto arte da interpretação, revela as ligações do ser humano com o cosmos, seus processos e transformações. Fundamenta-se numa leitura intuitiva das relações e conexões entre os eventos e encanta muitas pessoas. Admiro e respeito muito essa linguagem que é tão abrangente para falar do mundo.

Capa do romance “Sobre os ossos dos mortos”, da escritora polonesa Olga Tokarczuk, Nobel de Literatura Foto: Reprodução / Divulgação

No que parece ser uma crítica à tradição ocidental, Janina opõe “filosofias e teologias engenhosas” que justificam a “matança cruel e insensível” a conhecimento como a astrologia, a ecologia e a poesia mística de Blake. Outros tipos de conhecimento poderiam ajudar a tirar o Ocidente da crise em que se meteu?

Janina não se conforma com a crueldade do mundo e procura um apoio intelectual não apenas para lidar com a dor, mas também para explicar por que as coisas são assim e o que se pode fazer. Busca teorias ao acaso e se depara com Blake, cuja atitude pré-romântica se ajusta muito bem à nossa sensibilidade contemporânea. É uma filosofia antiga que contempla o ser humano como uma parte da natureza, como um ser conectado a vários outros em uma complicada rede de relações. Essa visão poético-mitológica lhe traz alívio. Invejo-a por conseguir confiar em algo até o fim.
Desde novembro, “Sobre os ossos dos mortos” vendeu 20 mil cópias (físicas e digitais), o que é um número impressionante para o mercado brasileiro. Gostaria de mandar algum recado para seus fãs brasileiros?
É maravilhoso que os brasileiros entendam meu humor estranho e que uma excêntrica velha polonesa possa ser uma figura psicologicamente universal. Na Polônia, os críticos consideraram o livro uma “aberração”, “o mais fraco de Tokarczuk”. Adoro como a capa da edição brasileira alude à perspectiva tragicômica do livro. Quando comecei a escrever, sabia que era fácil cair no sentimenalismo ao falar de sofrimento e direitos dos animais. Mulheres e animais são sempre assuntos subversivos e é preciso procurar novas linguagens para tratar deles.

O GLOBO