As cartas do Centrão – Editorial

Bolsonaro negocia com partidos que, sem nenhum compromisso com o interesse público, fazem da política balcão de negócios

Não bastasse a pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro criou mais um elemento a gerar preocupação sobre o futuro do governo e do País. Na tentativa de se proteger de eventual abertura de processo de impeachment, bem como de barrar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar suas irresponsabilidades, o presidente da República passou a negociar pessoalmente com o chamado Centrão – o bloco de partidos que, sem nenhum compromisso com o interesse público, faz da política um balcão de negócios.

Conforme revelou reportagem do Estado, o objetivo do Centrão é a liberação de recursos públicos, com o abandono por parte do governo federal de seu compromisso com o equilíbrio das contas públicas. Sinônimo de fisiologismo e habituado a não ter especiais pudores em suas negociações, o bloco de legendas tem claro o que deseja do presidente Jair Bolsonaro.

Ciente de que o Palácio do Planalto tem o controle das artilharias virtuais contra seus adversários políticos, o Centrão exige, em primeiro lugar, um cessar-fogo das redes bolsonaristas. Ainda que sua trajetória parlamentar seja umbilicalmente unida aos partidos do Centrão, desde a campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro valeu-se da rejeição popular à compra e venda de apoio parlamentar, e prometeu instaurar uma forma de fazer política. Agora, o Centrão está cansado do tratamento abusivo que recebeu nos últimos dois anos e prescreve, se o presidente de fato almeja apoio no Congresso, a interrupção dos ataques, numa política de mais moderação e diálogo. O Centrão é especialista neste diálogo que, acima de tudo, é um intenso e profícuo comércio.

O Centrão pode ser criticado por inúmeros defeitos, mas não o da ingenuidade. Sabe que, para a concretização dessa troca de apoio e favores, é preciso que as partes honrem a palavra – e, nestes 17 meses de governo, o presidente da República não foi pródigo em exemplos nesse sentido. Na realidade, Jair Bolsonaro fez-se insistentemente refém de quem grita mais alto, mesmo que a voz altiva fosse apenas a de seus devaneios. O Centrão não é afeito a esse tipo de inconstância. Para entregar o tão desejado apoio político no Congresso, quer ver antes o presidente Bolsonaro cumprindo sua palavra.

Mas tudo isso são meras condições prévias diante do real objeto de desejo do Centrão. Em sua aproximação de Bolsonaro, o bloco vislumbrou um jeito de assegurar sua sobrevivência eleitoral. A solução não tem nada de inovadora, mas simples cópia do que, anos antes, o presidente Lula fez de forma tão sistemática. O Centrão quer que o governo federal abra as torneiras do Tesouro, irrigando com fartos recursos públicos o cenário eleitoral, especialmente no Nordeste.

Parlamentares do bloco já falam abertamente, por exemplo, em tornar permanente o auxílio emergencial de R$ 600 a informais e de ampliar o valor do benefício pago a empregados com carteira assinada afetados por redução de jornada e salário ou pela suspensão do contrato de trabalho. A jogada é clara: que o “corona voucher” possa ser o que foi o Bolsa Família, em termos eleitorais, durante os anos em que o PT esteve no governo federal.

Além de não ser ingênuo, o Centrão sabe que não há recursos públicos suficientes para a empreitada. Mas ele não se melindra com a origem do dinheiro e tem uma sugestão para contornar essa dificuldade – a emissão de moeda. Eis o cenário ideal para as aspirações do Centrão: um presidente da República que faz de tudo para se enfraquecer diariamente e ainda se mostra disposto a imprimir dinheiro. É modalidade de saque sem limite.

A concretização do acordo de Jair Bolsonaro com o Centrão representa o abandono da política prometida na campanha, escanteando a um só tempo o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. Tal como Lula e Dilma fizeram, o tal pacto levaria o País à garra por meio da irresponsabilidade fiscal, tudo em troca de apoio político-eleitoral. De forma trágica e dolorosa, o País vê como bolsonarismo e lulopetismo são semelhantes, se não nos meios empregados, certamente quanto aos fins que almejam.

É constrangedor o desrespeito com que Jair Bolsonaro trata os brasileiros – e tudo isso, no meio de uma pandemia.

O Estado de São Paulo