RIO — Quando a escritora Conceição Evaristo leu pela primeira vez “Quarto de despejo” (1960), livro de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), sentiu o impacto de uma novidade que mudaria sua vida: “Era como ler o cotidiano de minha família”. Se pudesse escrever hoje para a autora, talvez contasse que sua mãe, após também ser tocada pela obra sobre a rotina na favela, escreveu um diário, semelhante ao de Carolina, que a escritora mineira guarda em casa.

— Nós conhecíamos os lixos de Belo Horizonte, e ele significava sobrevivência, assim como o lixo de São Paulo para Carolina — conta Conceição. — Ela inaugurou uma nova vertente na literatura brasileira em que o ato literário se dá como inscrição de vida, não somente uma vida particular, mas uma vida coletiva. No caso dela, trata-se de vivência de uma mulher negra e pobre que entende que sua vida merece e precisa ser escrita por ela mesma.

Hoje, 60 anos após a primeira publicação de “Quarto de despejo”, a obra segue causando forte impacto em jovens, como teve na Conceição de vinte e poucos anos. Mas o que diriam essas novas gerações para Carolina?

O GLOBO selecionou quatro cartas, entre 485, de mulheres negras que se inscreveram para participar do processo de formação dedicado à obra de Carolina na Festa Literária das Periferias (Flup). Trechos delas, reais ou ficcionais, podem ser lidos nesta página.

Realizada pela primeira vez em formato virtual, a Flup que começa hoje será toda dedicada a Carolina Maria de Jesus. Mais de 40 nomes, como a atriz Zezé Motta, a colunista do GLOBO Ana Paula Lisboa e as escritoras Ana Maria Gonçalves e Eliana Alves Cruz debaterão temas relacionados à homenageada. A abertura é às 19h, com Conceição Evaristo e Vera Eunice, filha de Carolina. As conversas podem ser vistas nas redes do evento e ficam disponíveis no canal da Flup no YouTube.

Biógrafo de Carolina e convidado da Flup, Tom Farias destaca a atualidade da autora, um “painel vivo de denúncia social”, o que talvez explique o renovado interesse por ela:

— Carolina não surpreende apenas pelo furor da linguagem, mas pelo ato de contadora da sua própria história, onde está subscrito, espécie de palimpsesto, a história da gente pobre brasileira.

As cartas selecionadas

De: Marlete Olivera *

Marlete Olivera: 'Hoje escrevo para todas que usam a palavra dita ou escrita para se salvar e assim salvar o mundo' Foto: Divulgação/Cristian Dreyer
Marlete Olivera: ‘Hoje escrevo para todas que usam a palavra dita ou escrita para se salvar e assim salvar o mundo’ Foto: Divulgação/Cristian Dreyer

Carta a Carolina Maria de Jesus…

e a Maria, a Conceição, a Stella, a Iracema, a Leonice, a Maya, a bell, a Sueli, às mulheres negras, a mim.

Hoje escrevo para todas as mulheres que me habitam, que me acolhem, que escrevem comigo a nossa história. Hoje escrevo para todas que usam a palavra dita ou escrita para se salvar e assim salvar o mundo.

Beatriz Nascimento, uma mulher que me ensina muito, assim como você, Carolina, um dia disse que o Quilombo está dentro de nós. Minha mãe Leonice Oliveira me constituiu escrevendo em mim seus mais profundos desejos por liberdade. Minha vó Iracema Ferreira sempre me fala da importância de voltar pra casa, de saber de onde viemos. E minha bisavó Maria da Glória me mostrava isso na prática todas as vezes que insistia em fugir e voltar para a nossa terra, nossa gente, mesmo que ela nunca tenha conseguido explicar o lugar que ela almejava estar.

Escreviver pra mim é seguir nosso legado por existência, e não deixar que contem a nossa história, é sussurrar segredos de sobre-vivência.

Nessa carta quero te agradecer pelas muitas vezes que se negou a deixar de existir, pelas tuas palavras que ecoam em nossos corpos, pelos teus segredos que nos auxiliam na luta por existência, pelas tuas denuncias que furam nossas bolhas e nos ajudam a ver o mundo, pela tua vontade imensurável de estar estar presente ao longo das gerações, pela possibilidade de achar que posso te escrever e assim escrever para todas as mulheres negras.

* Gaúcha, 29 anos, vive em Porto Alegre (RS) e faz mestrado em Psicologia

De: Naïma Zefifene *

Naïma Zefifene: 'Minha bisavó era empregada doméstica e trabalhava para os colonizadores franceses na Argélia' Foto: Divulgação
Naïma Zefifene: ‘Minha bisavó era empregada doméstica e trabalhava para os colonizadores franceses na Argélia’ Foto: Divulgação

Querida Carolina Maria de Jesus,

Posso chamar a senhora de “você”? É verdade que não te conheço, mas ainda assim você faz parte da minha família. Essa família que a gente cria, sabe? Quer dizer, te coloco na minha árvore genealógica porque você é uma das nossas. Ou melhor dizendo, nós viemos suas filhas.

Minha bisavó era empregada doméstica e trabalhava para os colonizadores franceses na Argélia. Ela faleceu de um infarto na casa do patrão, deixando minha avó órfã. Esta, por sua vez, passou a vestir o uniforme de empregada. A tragédia da nossa família constava ali. O legado da família era estar a serviço dos outros.

Após a guerra pela independência do país, o exílio conduziu minha avó e seu esposo para o outro lado do mar, nas terras do colonizador. (…) Alguns anos depois nasceram minha mãe e seus quatro irmãos. Minha mãe queria ser artista, estilista, sei lá… Ela, muito atrevida, cometeu o grande pecado de desejar o que é proibido a nós, pobres, mulheres, pretas, indígenas, imigrantes… Ela tinha um sonho!

Mas logo que eu cheguei, meu pai meteu o pé. Péssima sintonia, né, Carolina? Isso te soa familiar? Você, que sacrificou muito, que sacrificou tudo, em nome de seus filhos. Você que silenciou a mulher, e a criança que sonhava ser atriz e cantora. Minha mãe não teve seu talento, ou sua coragem. Ela não escrevia nos cadernos esquecidos pelos clientes dos hotéis onde trabalhava. (…)

Você é minha tia da América. Ao abrir “Quarto de despejo”, me encontrei na sua visão de mundo, na sua coragem, na sua prosa. (…) Você jogou na cara da sociedade o fato de que nosso legado poderia, enfim, ser outro, e não apenas estar a serviço dos outros.

* Francesa, 38 anos, vive em Paris e é mestre em Gestão Cultural

De: Luana Galoni Pereira*

Luana, uma das participantes da Flup que escreveram cartas para Carolina Maria de Jesus Foto: Divulgação
Luana, uma das participantes da Flup que escreveram cartas para Carolina Maria de Jesus Foto: Divulgação

Oi dona Carolina,

Gostei muito do seu livro, nem parece os livros da escola que a gente lê e não entende nada, o seu eu entendi tudinho. Lá a senhora escreveu que a Vera não tinha sapato, eu também não. Todos os sapatos que tive vieram dos sacos de doação, mas nunca são sapatos bons, sempre um número a menos ou a mais. Eu calço 37, mas uso o que vem no saco. As pessoas dizem que doam por amor, mas só doam o que elas não querem.

Eu penso assim, o que a gente não quer, a gente joga no lixo. Será que o amor delas é lixo? Teve uma aula que a Heloísa, professora aqui do CENSE, falou sobre a escravidão, falou que só os escravos livres usavam sapatos. Eu fiquei com vontade de chorar, porque nesse dia eu tava com um chinelo que preguei com prego, e, às vezes eu pisava errado e me furava. Dona Carolina, eu não tenho sapatos e agora também não tenho liberdade. Será que sou que nem os escravos?

Eu tô escrevendo essa carta porque a Heloísa passou um dever pra escrever uma carta pra senhora, eu gosto da Heloísa, ela tem cabelo duro que nem o meu, mas é um duro diferente. Eu não sei o que ela faz com ele que fica duro diferente, o meu é só duro mesmo. Minha mãe antes de morrer dizia que eu ia ser professora, ela morreu de Aids, eu achava que a gente só morria de ser velho e de tiro. Aí quando ela morreu eu descobri que a gente morre até do que não sabe.

Ah, meu nome é Sara, tenho 15 quase 16. Vim pra cá porque tive fome e roubei. Não dei sorte, me pegaram. (…) Seu livro é muito bonito dona Carolina, acho que a senhora devia ser bonita também, vou pedir pra Heloísa me mostrar uma foto sem as meninas saberem.

*Fluminense, 24 anos, vive em Seropédica (RJ) e faz mestrado em Psicologia

De: Ingrid de Paula*

A autora Ingrid de Paula Foto: Divulgação
A autora Ingrid de Paula Foto: Divulgação

Querida Bitita,

Amanheci triste, pois percebi que também sou poetisa, e excesso de imaginação é demasiado. O mundo que os poetas criam é melhor, justamente porque ele não existe.

Imagino tanto que minha cabeça avoa por aí, a cabeça vira um par de asas quebradas. Um poeta não pode ser inteiro.

Me avoei pensando em nós duas, sentadas na varanda tomando café, e falando mal, mas bem mal dos desgovernantes do nosso país, no final você cantava um sambinha sobre a vida infausta dos favelados, e nós discutíamos sobre Platão e Aristóteles.

Carolina, lembro-me daquilo que disse naquela tarde: “Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o país dos políticos açambarcadores”.

Mas Bitita, o braço do pobre está cada vez mais desnutrido, mais faminto por uma justiça que nunca veio e está fraco. “E tudo que está fraco morre um dia.”

Temo por eles, como pode o braço fraco do Brasil carregar o país nas costas? Você prossegue com seu ensinamento: “Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre.”

Ainda são tempos sombrios, minha cara amiga. Estamos a 17 passos do suicídio estampado de verde-amarelo-sangue.

Em nome de tudo isso, poetizamos.

Estou com saudade de nosso café.

* Mineira, 21 anos, vive em Belo Horizonte (MG) e estuda Letras

O GLOBO