Inéditos de João Cabral de Melo Neto serão publicados para marcar centenário

Autor, que faria 100 anos no dia 9, terá obra completa e novas biografias publicadas neste ano

Por Bolívar Torres

RIO —  Os documentos oficiais e a família de João Cabral de Melo Neto discordam sobre o dia em que o autor veio ao mundo. Mesmo que a certidão de nascimento marque 6 de janeiro de 1920, Cabral sempre comemorou seu aniversário três dias depois. A mãe, Carmen, insistia que ele nascera em um 9 de janeiro. A próxima quinta-feira, portanto, marca o centenário de nascimento oficial do escritor pernambucano, quando se inicia também uma série de comemorações em torno da efeméride.

Poema inédito:

'O dialeto', poema inédito de João Cabral de Melo Neto, que estará em antologia a ser lançada pela Alfaguara Foto: Divulgação
‘O dialeto’, poema inédito de João Cabral de Melo Neto, que estará em antologia a ser lançada pela Alfaguara Foto: Divulgação

Após a morte de Cabral, em outubro de 1999, foram publicadas duas edições com a integralidade de seus versos: uma da editora Nova Aguilar, de 2008; e outra da Glaciar, publicada em 2014 apenas em Portugal. Ambas foram organizadas pelo poeta e imortal da ABL Antonio Carlos Secchin, grande especialista em Cabral, que também é o responsável pela nova edição da poesia, a ser publicada desta vez pela Alfaguara, em meados do ano. A cada versão da antologia, ele vai aperfeiçoando o trabalho de fixação de texto, o que significa comparar publicações revendo verso a verso em busca de erros e gralhas.

“São detalhes que podem parecer insignificantes ao leitor comum, mas que significam muito. O trabalho de fixação demanda alguém que conheça o conteúdo e, especialmente, a forma do poeta: metrificação, rimas, obsessões vocabulares”

ANTONIO CARLOS SECCHIN
Organizador da antologia poética de João Cabral
Antonio Carlos Secchin organizou três antologias com a integralidade da produção poética de João Cabral Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Antonio Carlos Secchin organizou três antologias com a integralidade da produção poética de João Cabral Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo

Desta vez, porém, o trabalho ganhou uma dificuldade suplementar. Além de dois livros póstumos de Cabral, “Ilustrações para fotografias de Dandara”, de 2011, e “Notas sobre uma possível ‘A casa de farinha’”, de 2014, que não estavam em outros volumes das obras completas, a nova edição terá o acréscimo de dezenas de poemas nunca publicados.

A pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou o material em uma pasta do acervo do autor na Casa de Rui Barbosa, que ainda está sendo analisado em toda sua extensão. Cerca de 40 poemas já foram confirmados como inéditos por Secchin e Edineia. Outros se enquadram na categoria de dispersos (versões diferentes de poemas já publicados). Mas há muito trabalho pela frente, e outras novidades podem surgir.

A pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou mais de 40 poemas inéditos no acervo de João Cabral Foto: Divulgação
A pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou mais de 40 poemas inéditos no acervo de João Cabral Foto: Divulgação

Entre os inéditos, há versos surpreendentes, com o poeta investindo em assuntos pouco ou nunca abordados em sua bibliografia. O Rio, por exemplo, aparece de forma não muito positiva no poema “Rio de Janeiro”, no qual o autor discorre sobre… porque fala tão pouco sobre a cidade em sua obra. Em outro poema, “Mística na Bahia”, Cabral reflete sobre a escrita de Jorge Amado, autor que nunca havia mencionado antes, e tece comparações entre o baiano e Vinicius de Moraes. Já em “Dialeto”, publicado aqui em primeira mão, o poeta ironiza o sotaque carioca.

“É uma pasta vasta. Transcrevi mais de 40 poemas encontrados lá, já prontinhos, sem nenhuma interferência, nenhuma marca indicando que sejam anotações de outros”

EDINEIA RODRIGUES RIBEIRO
Pesquisadora, que encontrou textos inéditos de João Cabral na Casa de Rui Barbosa

A prosa também aparece contemplada entre os inéditos. Edineia encontrou um discurso de 30 laudas, que Cabral teria lido em uma conferência em Recife em 1953, e no qual defende uma produção poética mais conectada com a realidade. A palestra deve entrar na antologia de prosa, que sairá pela Alfaguara com organização de Sérgio Martagão Gesteira. O livro é constituído, em sua maior parte, por um longo garimpo feito desde os anos 1990 pelo pesquisador, que conseguiu reunir 23 textos em prosa e 16 entrevistas (a edição da Nova Aguilar, de 2008, totalizava 12 textos fora do âmbito da poesia).

João Cabral de Melo Neto fazendo compras em Dakar, no início dos anos 1970 Foto: Acervo Familiar
João Cabral de Melo Neto fazendo compras em Dakar, no início dos anos 1970 Foto: Acervo Familiar

João Cabral de Melo Neto era conhecido como um autor discreto e fechado, que não gostava de falar de si mesmo. Curiosamente, poucos autores falaram mais de si e de sua obra quanto o pernambucano — e, para comprovar, basta ver as inúmeras entrevistas que deu a qualquer pessoa que aparecesse com um gravador. A contradição não passou despercebida pelos estudiosos. Que o digam Eucanãa Ferraz e Ivan Marques, autores, respectivamente, de uma fotobiografia e de uma biografia do autor. Os livros, que devem sair neste ano de centenário do poeta, ajudam a desfazer alguns clichês em torno de João Cabral.

“Cabral sempre foi arredio à ideia de explorar a intimidade, se declarava sujeito tímido, que usava terno e gravata para que não o notassem. Dizia que não gostava de reviver a memória, mas vivia falando de si e voltando à sua infância”

EUCANÃA FERRAZ
Responsável pela organização da fotobiografia, ainda sem título, que será lançada pela editora Verso, e reunirá cerca de 200 imagens de Cabral

Responsável por aquela que é tecnicamente a primeira biografia de peso de João Cabral de Melo Neto, o professor de literatura brasileira Ivan Marques, da USP, se baseou em grande parte nos muitos diálogos do poeta com jornalistas e pesquisadores. O livro, que ainda não tem nome e deve sair pela Todavia ainda no primeiro semestre, bebe em fontes como “O homem sem alma” (1996), em que o crítico José Castello traça um perfil do pernambucano a partir de uma série de conversas que teve com ele. Mas Marques também encontrou vasto material na própria obra de Cabral.

Dor misteriosa

Nas entrevistas, o biógrafo achou informações de eventos menos conhecidos do poeta, como a sua internação em uma clínica psiquiátrica, em Recife, nos anos 40. Promissor meio-campo do América de Recife, Cabral teve que largar o futebol por causa de terríveis enxaquecas, que lhe perseguiram durante toda a vida (até a velhice, tomava seis aspirinas por dia). A internação não achou solução para as dores, assim como as cerca de 30 intervenções cirúrgicas que fez posteriormente. A causa do sintoma ainda é um mistério, e Marques não descarta algum aspecto psicológico.

Por sinal, os leitores têm tendência a associar Cabral à sua poesia, vendo nele uma figura cerebral e com total controle de suas ações. Mas o poeta era muito diferente de sua obra, acredita Marques.

“Quem lê aquela poesia bem formalizada imagina uma pessoa em ordem consigo mesma. Mas ele era um ser à flor da pele, com muita dificuldade na vida prática. É possível que sua obra seja uma espécie de tentativa de harmonizar essa desordem interior”

IVAN MARQUES
Biógrafo de João Cabral

O poeta Eucanãa Ferraz é outro que encontrou um Cabral bem diferente. Em muitas das imagens que reuniu para a fotobiografia, é possível ver o escritor em momentos de intimidade com a família e amigos. Uma figura relaxada e sorridente, muito distante da imagem sisuda que ficou para a posteridade.

— O livro mostra mais o lado doméstico do que a intimidade, que será preservada — diz Eucanãa. — Nas fotos vemos alguém sempre à vontade, sempre feliz na vida familiar.

João Cabral de Melo Neto, em 1969, na Academia Brasileira de Letras Foto: Arquivo
João Cabral de Melo Neto, em 1969, na Academia Brasileira de Letras Foto: Arquivo

Um Cabral mais pessoal também poderá ser visto em outras duas obras. Composto de fragmentos inéditos de entrevistas ao cineasta Bebeto Abrantes, “Recife/sevilha” (Autêntica) mostra a relação dele com a cidade espanhola.

Obras-primas finais

Já “João Cabral de ponta a ponta”, que Antonio Carlos Secchin publicou pela Cosac Naify em 2014 (sob o título “João Cabral. Uma Fala Só Lâmina”), analisa todos os seus livros, desde a “Pedra do sono” (1942). A reedição, pela editora Cep, vai acrescentar uma farta bibliofilia em torno do poeta, como uma dedicatória que ajuda a entender melhor a ainda misteriosa rusga entre Cabral e Drummond, que se afastaram a partir dos anos 1950.

— Incluímos uma dedicatória feita por Drummond a João Cabral em um exemplar de “Claro enigma” — lembra Secchin. — É um detalhe importante da história social da literatura, porque situa até quando eles tiveram um bom relacionamento.
João Cabral de Melo Neto, em 1990 Foto: Carlos Wrede
João Cabral de Melo Neto, em 1990 Foto: Carlos Wrede

Outro aspecto do livro de Secchin é dar uma nova dimensão à fase final da obra de João Cabral, que não costuma ter a mesma atenção crítica do que livros como “Cão sem plumas” (1950) e “Morte e vida severina” (1965).

— Estudo Cabral desde 1977 e devo ser o único brasileiro que pode pedir aposentadoria em João Cabral depois de quase 40 anos de contribuição — brinca Secchin. — Meu maior empenho com essa obra é que se valorize mais os últimos livros do autor, que são de altíssima qualidade. Ainda há uma leitura preguiçosa que desconsidera o que ele escreveu nos anos 1960, como se ele tivesse encerrado a sua obra. Mas depois disso ele publicou “Agrestes”, “A escola das facas e “O auto do frade”, que apesar de serem menos conhecidos, são obras-primas.

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