Dama das Artes, Fernanda Montenegro faz 90 anos e brilha em biografia

Atriz mais admirada do Brasil e uma das maiores do mundo, Fernanda Montenegro completa 90 anos, hoje, e vem recebendo merecidas homenagens pela data. O livro de memórias Prólogo, Ato, Epílogo (Companhia das Letras | 328 págs. | R$ 49,90/papel e R$ 29,90/e-book), realizado com a colaboração de Marta Góes, narra a trajetória da artista e é o terceiro de não ficção mais vendido no país há três semanas.

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A diva carioca Fernanda Montenegro completa 60 anos, hoje: ela encarna o melhor do Brasil e é a maior atriz do país (Foto/Divulgação)

Nele, a mãe da atriz Fernanda Torres e do diretor Cláudio Torres conta a sua história de modo direto, afetivo, sagaz e sensível. O livro é fruto de 18 entrevistas que Marta Góes fez com a artista entre julho de 2016 e novembro de 2017. A partir do material recolhido e transcrito por Marta, Fernanda escreveu a obra entre novembro de 2017 e agosto de 2019.

Os palcos, os estúdios de cinema e de televisão são a casa da diva nascida em Campinho, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Mas antes das muitas glórias na dramaturgia como Fernanda Montenegro existiu Arlette Pinheiro Esteves da Silva.

Única brasileira indicada ao Oscar de melhor atriz (por Central do Brasil, de Walter Salles, em 1998), e descendente de portugueses e italianos, ela escolheu o nome de Fernanda por achar que “Fernanda tinha um clima de romance do século XIX – existiam muitos Raymondes e Fernandes naquelas histórias”.

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Montenegro, por sua vez, era um médico milagreiro de subúrbio que ela não chegou a conhecer, mas de quem ouviu muito falar na história de sua família. “Nos relatos de casa, alguém estava morrendo e o dr. Montenegro chegava, receitava e qualquer doença desaparecia”, lembra.

Assim, Fernanda Montenegro virou seu nome artístico quando ela não tinha ainda 20 anos, dava aulas de português para estrangeiros na Berlitz e emprestava a voz para personagens de radionovelas. “Aos poucos, Arlette voltou para o seu fechado universo familiar. Mais um toque esquizofrênico deste meu viver”.

Só Freud explica – Em 1953, Fernanda Montenegro casou-se com o ator Fernando Torres, que ela havia conhecido no grupo de jovens que circulavam pela rádio e que reencontrou nos ensaios da peça Alegres Canções na Montanha.

Fernando, falecido em 2008 aos 80 anos, foi o grande amor da vida da atriz. “Um par que permanece juntos por sessenta anos sempre provoca estranhas, mirabolantes e perversas explicações. Fernando e eu nos juntamos, nos colamos. Explicar? Como? Aliás, para que explicar. Não tem explicação racional nem irracional. Nem esotérica”, diz.

“Acreditávamos – e de uma maneira honesta, radical – que éramos ‘modernos’ e só queríamos ser felizes. Jamais nos submeteríamos a uma união, ou a um casamento por uma vida inteira. Apenas enquanto quiséssemos. Se não estiver bom, cada um para seu lado. Tudo muito definitivo e acertado. Conclusão? Fernando foi o único homem da minha mais profunda, celular intimidade. Só Freud explica? Tudo bem: só Freud explica”, completa.

O humor sutil, a sinceridade e a elegância de Fernanda Montenegro ao contar suas histórias – que também dizem muito sobre o Brasil das últimas nove décadas – são aspectos que tornam Prólogo, Ato, Epílogo uma leitura irresistível.

Na página 95, por exemplo, ela revela que desde jovem – e sem histrionismo – já vinha se “deseducando” de tudo que dizia respeito à “moral patriarcal” obrigatória.

“Eu sou lenta. Pelo próprio exercício da minha profissão, sempre convivi com muitos homens: machos, extremamente machos, não tão machos, jamais machos e os definitivamente entregues a qualquer exercício sexual”.

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Na década de 1960, Fernanda Montenegro fez teatro em frente às câmeras, ao representar mais de 170 peças no programa Grande Teatro Tupi. Esse foi o primeiro passo para passar às telenovelas e a consagração na Globo, de quem a atriz é funcionária até hoje.

Ainda na década de 60, quando juntava o teatro e a televisão, viveu a sua primeira experiência no cinema em A Falecida, filme de  Leon Hirszman baseado na obra homônima de Nelson Rodrigues. Em 2015, A Falecida entrou na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Acordo e  canto – Nos anos 1970, Fernanda Montenegro já era o nome preferido dos encenadores,  produtores e cineastas brasileiros. O talento instintivo, a técnica perfeita e a incrível capacidade de transformação da atriz era reconhecida pela crítica, pelos colegas e pelo público.

Os seus trabalhos mantiveram o público fiel e emprestaram uma grande qualidade às produções da época.  Ao entrar para as novelas da Rede Globo, nos anos 1980, passou a estar presente no cotidiano do público brasileiro, enquanto prosseguia atuante no teatro e no cinema – e conquistava prêmios nas três áreas.

Como pessoa inteligente que é, Fernanda Montenegro não fica se autoelogiando no livro de memórias que inclui fotos e listas com os seus muitos trabalhos e prêmios (incluindo láureas internacionais pelo filme Central do Brasil e a telessérie Doce de Mãe).

“Meu último trabalho sobre um palco é a leitura de crônicas que organizei com base no livro Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo, de Sônia Rodrigues. Fecho a leitura com a frase: ‘Aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo’. Não é um pensamento ególatra, é uma frase de quem fez da própria vida uma fonte de resistência, é uma frase de autoentendimento”, afirma.

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E, do alto dos seus 90 anos, diz com sabedoria: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”.

Entre os milhões de fãs do seu talento e da sua personalidade, o grande poeta Carlos Drummond de Andrade traduziu muito bem o que sentimos por Fernandona – “Não se sabe o que mais admirar nela : se a excelência de atriz ou a consciência, que ela amadureceu, do papel do ator no mundo”.

TRECHOS DO LIVRO

À TV eu  devo   – e não só eu – um retorno financeiro que é origem e base de uma independência econômica nesta minha velhice. Isso depois de estar a serviço de uma dramaturgia eletrônica há mais de setenta anos. Fato a observar: na minha vida pública, quase sempre estive presente ao mesmo tempo no teatro, na TV e no cinema. Portanto, esses anos devem ser triplicados. Dei conta de mais de duzentos e tantos anos de trabalhos ininterruptos. É a alegria e a ‘condenação’ de um ofício. Participei de projetos referenciais como o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, minissérie de Guel Araes, em seguida transformada em filme de grande sucesso. Uma direção também referencial. Sou-lhe eternamente agradecida por isso. Era a Nossa Senhora da minha infância, do quadrinho na parede, da medalhinha. A propósito, sou mariana – com muita unção – porque vejo em Maria a primeira feminista poderosamente atuante ao dar a Deus a permissão de lhe gerar um filho nas entranhas: “Faça em mim segundo a Sua vontade”.

Pelo próprio exercício da minha profissão, sempre convivi com muitos homens: machos, extrema- mente machos, não tão machos, jamais machos e os definitiva- mente entregues a qualquer exercício sexual.

Por que nenhum governo cumpre sequer um décimo do que pro- mete, como no caso da cultura, sempre tida, estupida- mente, como uma nutilidade, uma frescura? Refiro-me à Cultura das Artes. É a Cultura das Artes que faz uma nação. Sem ela é apenas uma fronteira.

Correio24horas

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