Os millennials estão censurando a cultura?

Gerações mais velhas ponderam que a obsessão dos jovens atuais pelo politicamente correto ameaça sufocar a liberdade de discurso

Os millennials estão censurando a cultura?
Os mais jovens estariam colocando a cultura provocativa em risco? (Foto: Mutant669/Wikimedia)

Quando Sofka Zinovieff entregou seu romance “Putney”, sobre uma garota de 13 anos que tem um “caso de amor” nos anos 1970 com um homem mais velho e percebe, décadas mais tarde, que o caso se tratava de abuso de menor, seu antigo editor na editora Jonathan Cape optou por não publicar.

As razões vieram à tona neste ano, quando ele foi entrevistado no Spectator. “Se Lolita aparecesse hoje, eu nunca conseguiria passar [a obra] pela equipe de aquisição – um comitê de pessoas na casa dos 30 anos, que diria: ‘Se você publicar este livro, todos nós vamos pedir demissão’”, disse o editor Dan Franklin, apontando movimentos como o #MeToo e as mídias sociais como fatores fundamentais. “[Hoje] Você pode galvanizar ódio com a queda de um chapéu”, disse ele.

O livro passou pela equipe de aquisição da Bloomsbury – esmagadoramente feminina e com idades mistas -, que teve a coragem de publicar “Putney”, que foi descrito pelo jornal Observer como “Lolita da era do #MeToo”. Quer houvesse alguma verdade em suas palavras ou não, a posição de Franklin revela quanto medo ronda atualmente a publicação de obras.

O equilíbrio de poder entre os sexos é notoriamente um campo de batalha, tanto na vida, quanto na literatura, e agora estamos presos no fogo cruzado entre gerações. Historicamente, os velhos impuseram suas tradições e códigos morais aos jovens, mas agora os jovens frequentemente estão dando as ordens, particularmente em questões de gênero, sexo e poder. Na última década, assistimos a uma mudança revolucionária. Muitos homens mais velhos e celebridades que achavam que tinham se saído impunes de casos de abuso infantil estão agora na prisão.

Costumávamos aceitar e até rir de “groupies” menores de idade dormindo com estrelas pop; agora, elas são incontestavelmente vítimas. Também estamos reavaliando o que a liberação sexual feminina dos anos 1960 e 1970 conquistou para as mulheres, como analisa a obra “How Was It for You?”, da escritora britânica Virginia Nicholson.

E com todas as revelações do movimento #MeToo, a juventude vivida nos anos 1980 começou a parecer mais grotesca e ininteligível para a geração atual, que é versada em noções de consentimento e igualdade de gênero.

São os mais jovens que são mais esclarecidos sobre consentimento, sobre o que constitui abuso e sobre o que pode ser dito e por quem. Gerações anteriores consideram isso complicado.

Essa desconexão geracional é mais do que a tempestade de indignação em relação ao #MeToo, por parte de Catherine Deneuve e de outros, que defendiam a sedução em oposição ao que consideravam uma correção política irritantemente puritana. Em recente entrevista, Elizabeth Gilbert, autora de “Comer, Rezar e Amar”, disse que, apesar de ser uma “defensora fanática” do #MeToo, o foco no consentimento tornou o papel das mulheres muito passivo, com tarefa de “apenas conceder ou negar”. Desde a comédia Lisístrata, de Aristófanes, a sexualidade tem sido usada como moeda de barganha, mas, como Elizabeth Gilbert perguntou, e quanto ao desejo feminino predatório?

Qualquer policiamento realizado por jovens é certamente parte de uma luta mais ampla, contra os horrendos extremos da extrema-direita, a misoginia, a homofobia, a transfobia e a pornografia. Estes são tempos preocupantes e desafiadores. Mas enquanto os jovens acham que óbvio identificar onde as fronteiras são traçadas, seus pais podem ficar perplexos ao percorrer o terreno recém-traçado. Há uma sensação de que alguém pode cruzar um limite linguístico ou filosófico por engano, e que, mesmo com as melhores intenções, a patrulha da fronteira pode vir fortemente armada.

Os jovens são apenas mais vocais e influentes em suas críticas, por causa de fatores como as redes sociais, ou eles estão realmente tentando censurar o que está sendo dito?

“Eu sempre tomo cuidado com o que digo. Hoje eu penso em quais livros escolho para ensinar, tanto na questão do valor literário quanto na possibilidade de que pode ofender alguém. Estou sempre alerta de que uma aula no período da manhã pode se transformar em uma tempestade à noite no Twitter”, diz uma professora universitária não identificada.

John Sutherland, autor de “Offensive Literature: Decensorship in Britain, 1960-1982”, sugeriu que o que estamos testemunhando agora é a “recensura”. “É como a ideia de Anthony Burgess de que o liberalismo pelagiano alterna historicamente com o conservadorismo agostiniano. Nós nos movemos entre esses polos e agora estamos indo em direção a este último, pelo menos em termos de literatura”, disse ele.

Como professor emérito da University College London (UCL), Sutherland culpa em parte as mensalidades das universidade: “É uma luta pelo poder. Os estudantes agora têm poder porque pagam: o cliente tem sempre razão”. Para Sutherland, há muitos textos, como o “Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis, que agora não podem ser ensinados porque os palestrantes temem as reações de seus alunos.

Mas é censura se as gerações mais velhas estão escolhendo livremente remover os livros ou não publicá-los, com base em uma reação que eles apenas antecipam dos jovens? A lista de livros realmente banidos é longa e às vezes gloriosa, e vai desde as revelações lésbicas de 1928 de Radclyffe Hall em “The Well of Loneliness” até “The Country Girls”, de Edna O’Brien, ambos proibidos na Irlanda em 1960.

Os EUA proibiram todo tipo de coisas de “Ulisses” a “Apanhador no Campo de Centeio”. E não é só puritanismo; a União Soviética censurou muitas obras-primas por razões políticas, incluindo o “Dr. Jivago”, de Pasternak, “Arquipélago Gulag”, de Soljenítsin, e “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell. No Reino Unido, muitos livros controversos foram descriminalizados depois que a Lei de Publicações Obscenas, de 1959, caiu após a publicação de “Lady Chatterley’s Lover”, de D. H. Lawrence, e de “Lolita”, de Vladimir Nabokov.

Embora sempre tenha sido a maioria dos homens brancos e idosos que elaboram os códigos morais da sociedade, eles agora estão sendo chutados pelos jovens. Isso é interessante e empolgante e, afinal, os jovens sempre mudaram a linguagem e as opiniões. Certamente seria uma pena se esta geração nos levasse de volta à censura de livros como “Lolita”, mas “Putney” mostra que há muitos jovens prontos para abraçar livros controversos, sem alertas ou censura.

Fonte:
The Guardian-Are millennials really driving ‘cancel culture’ – or is it their overcautious critics?

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