“NOSSAS VOZES FEMININAS INCOMODAM? ISSO NÃO É MAIS PROBLEMA NOSSO”, DIZ AUTORA DE LIVRO SOBRE AS BRUXAS DE SALEM

Vencedora do Pulitzer, a jornalista americana Stacy Schiff pesquisou os julgamentos que que condenaram 14 mulheres por feitiçaria

Ilustração mostra duas mulheres em uma casa enquanto, ao fundo, uma das execuções por bruxaria em Salem acontece Foto: Interim Archives / Getty Images
Ilustração mostra duas mulheres em uma casa enquanto, ao fundo, uma das execuções por bruxaria em Salem acontece Foto: Interim Archives / Getty Images

Ruan de Sousa Gabriel

Depois de escrever biografias de Cleópatra, a rainha do Egito e Véra Nabokova, a mulher do romancista russo Vladimir Nabokov, autor deLolita , a premiada jornalista americana Stacy Schiff resolveu investigar o que levou uma cidadezinha de colonos protestantes na Nova Inglaterra a executar 14 mulheres, cinco homens e dois cãezinhos em 1692. No livro As bruxas: intriga, traição e histeria em Salem  (Zahar, 340 páginas, R$ 89,90), recém-lançado no Brasil, Schiff reconstitui as acusações, o julgamento e as condenações que assombraram a cidadezinha puritana no final do século XVII. Os julgamentos de Salem foram devidamente documentados pela Justiça de Massachusetts, à época uma colônia britânica. Schiff consultou milhares de páginas de processos judiciais e diários pessoais para explicar como medo do demônio fez colonos piedosos denunciarem suas mulheres, seus vizinhos e vários inocentes por bruxaria – mais de 700 bruxas teriam sido vistas sobrevoando Massachusetts naqueles dias tenebrosos. “As bruxas” conta como interesses religiosos, políticos e econômicos sustentaram a cruzada dos cidadãos de bem da colônia contra aqueles que decerto tinham parte com o diabo e mulheres que incomodavam por saber um pouco demais.

Schiff, vencedora do prêmio Pulitzer, conversou com ÉPOCA sobre a reabilitação das bruxas pelo movimento feminista e as semelhanças entre Salem e as redes sociais.

Por que escrever sobre os julgamentos de Salem? A senhora sempre se interessou por bruxas?

De certo modo, Cleópatra me levou a Salem. Não há muitos momentos na história em que mulheres são protagonistas ou têm suas vozes ouvidas. Como toda mulher poderosa, Cleópatra também seria chamada de bruxa. Assim como o reinado de Cleópatra, os julgamentos de Salem são outro momento histórico ofuscado por mitos. Todo mundo já ouviu falar das bruxas de Salem, mas ninguém conhece direito os fatos: as bruxas foram enforcadas, não queimadas; houve acusações de bruxaria em 35 cidades, não só em Salem; homens também foram acusados, não só mulheres. Eu quis discutir como pessoas sem poder e voz alguma – os acusados de bruxaria – conseguiram abalar a estrutura de poder daquela sociedade.

Qual era a definição de bruxa no século XVII?

A autora Stacy Schiff Foto: Elena Seibert Photography
A autora Stacy Schiff Foto: Elena Seibert Photography

No século XVII, bruxa era alguém capaz de realizar atos sobrenaturais por ter um pacto com o demônio. A definição era fornecida pela religião. Negar a existência de bruxas era o mesmo que negar a Bíblia , que é de onde vem a condenação à feitiçaria. Naquela época, as bruxas não eram (ainda) criaturas da superstição, como hoje. Homens também podiam ser acusados de bruxaria. Cinco homens foram enforcados em Salem. O mais poderoso dos bruxos de Salem era um homem, um pastor. O século XVII não associava bruxas a chapéus pontudos e gatos pretos, embora se acreditasse que elas usassem animais (ou até familiares) em seus rituais satânicos. Gatos espectrais, gigantescos e translúcidos aparecem com frequência nos depoimentos em Salem. Na Nova Inglaterra do século XVII, seria muito difícil encontrar alguém que não acreditasse em bruxaria. Essa crença persistiu mesmo depois dos julgamentos.

O que pensa da apropriação das bruxas pelo movimento feminista?

Mulheres poderosas, mais cedo ou mais tarde, são sempre chamadas de bruxa. Historicamente, só há uma explicação para um homem disposto a obedecer uma mulher: ele está enfeitiçado. Isso não é um elogio ao poder das mulheres, mas uma maneira de diminui-lo, colocá-lo sob suspeita. Hoje as mulheres estão se apropriando do poder e neutralizando esse xingamento – “bruxa!” –, transformando-o num elogio. Nossas vozes femininas incomodam? Nossa confiança perturba? Nossa raiva é falta de educação? Isso não é mais problema nosso. O feminismo deu uma nova definição à palavra “bruxa”.

O julgamentos de Salem ainda assombram o imaginário americano?

Capa do livro As Bruxas Foto: Zahar
Capa do livro As Bruxas Foto: Zahar

Sem dúvida. Os julgamentos de Salem são o nosso pecado original. Escritores como Nathaniel Hawthorne e Arthur Milller ajudaram a incorporar os julgamentos ao nosso DNA. Salem permanece um mistério para nós: como isso pôde acontecer no meio de pessoas inocentes, esclarecidas e religiosas? Nós tendemos a esquecer o papel desempenhado pela religião. À medida que o pânico se espalhava em Salem, as pessoas se convenciam que apontar o dedo era um ato piedoso, um dever cristão, pois era necessário purgar a comunidade. Os julgamentos de Salem não foram a primeira onda de histeria a contagiar os EUA, mas foi a primeira sustentada pelo sobrenatural. Muitos de nós, que consultamos astrólogos ou cartomantes, queremos muito acreditar no sobrenatural, talvez ainda mais nestes tempos movidos a algoritmos e análise de dados. O feitiço de Salem permanece também porque essa é, sobretudo, uma história sobre a adolescência, sobre meninas adolescentes numa colônia adolescente comandada por homens que se sentiam indignos de seus antepassados pioneiros. Os ingleses viam os colonos como crianças desobedientes. Faz sentido que, até hoje, tantos adolescentes se interessam pelas bruxas de Salem.

O que causou essa “onda de histeria” na colônia?

O pânico virou uma bola de neve por inúmeras razões: tortura, tentativas de salvar a própria pele, rancores antigos. A principal pergunta é por que essa perseguição implacável às bruxas aconteceu em 1692. Afinal, houve acusações e julgamentos de bruxaria antes. Mas, nesses casos anteriores, ninguém estava convicto o suficiente para condenar os réus à forca. Em 1692, a política e um pequeno grupo de homens tentando provar que estavam do lado da lei e da ordem desempenharam um papel importante no convencimento da população de que os acusados eram, sem dúvida, bruxos e bruxas.

No começo do livro, a senhora propõe uma questão interessante: “Mulheres são as vilãs nos contos de fadas – qual o significado de sentar no próprio emblema do humilhante trabalho doméstico e sair voando?”. Qual a sua resposta?

Os depoimentos de Salem deixam claro que as mulheres faziam todo tipo de milagre doméstico: transformavam musgo em sopa, produziam rendas, conseguiam estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Mulheres rápidas, que cozinhavam bem demais, não se molhavam na chuva ou só criavam filhos saudáveis, eram suspeitas. Mulheres que desafiavam convenções sociais , que carregavam livros consigo, pechinchavam no comércio ou indicavam direções a quem se perdia nas ruas da cidade eram ainda mais suspeitas. Elas podiam até desafiar as leis da gravidade, mas pagariam um preço por isso.

Os julgamentos de Salem se sustentou em acusações infundadas e boatos. Em tempos de fake news, o que eles podem nos ensinar?

Os julgamentos de Salem contam uma história que permanece relevante hoje porque a cultura da internet e a cultura oral são estranhamente parecidas. Ambas viralizam informações falsas , espalham mais com mais rapidez boatos do que verdades. Ambas também compartilham um caráter tribal, contagioso, que permite o compartilhamento de alucinações em tempos ansiosos. Em Salem, as acusações de bruxaria eram incentivadas por antipatias pessoais e ressentimentos, eram uma maneira de dar vazão histérica a sentimentos represados. Hoje, nas redes sociais , crenças e opiniões se sobrepõem a evidências. Em 1692 já era assim.

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