Todos conhecem Frida Kahlo, mas poucos entendem sua dor

Tal era a constância da dor de Frida que ela ‘vivia morrendo’, segundo um amigo. Apesar disso, ela era surpreendentemente apaixonada pela vida

Todos conhecem Frida Kahlo, mas poucos entendem sua dor
Todos nos acostumamos com a dor de Kahlo. Ela nunca (Foto: Victoria and Albert Museum)
Frida Kahlo se tornou uma celebridade quando tinha apenas 22 anos, depois de se casar com o já famoso pintor Diego Rivera. Ela passou o resto da vida na sombra dele. Escreveu ela mais tarde a ele: “A conclusão que tirei é que tudo o que fiz foi fracassar. Eu vivo com você há dez anos sem fazer nada, em resumo, mas causando problemas e incomodando você. Comecei a pintar e minha pintura é inútil, mas para mim e para você comprar, sabendo que ninguém mais o fará”.

Quão doloroso é ler isso, sabendo que Kahlo era a melhor artista entre os dois. Ela era melhor não porque ela se tornou mais popular agora, nem porque ela era mais talentosa que Rivera. Ela não era. Ela era melhor porque sua arte tem uma urgência e uma especificidade que a dele quase não tem.

A arte de Rivera é como um discurso político: ao tentar aplicar “às massas” a todos, não se aplica a ninguém. A de Kahlo é enfaticamente sobre si mesma, com resultados tão belicosos, comprimidos e cativantes que acabamos impotentes e interessados diante dela.

A fama precoce de Kahlo a colocou em uma estranha trajetória. Ela foi fotografada para a VogueTime e Vanity Fair pelos mais famosos fotógrafos da época: Edward Weston, Manuel Alvarez Bravo, Ansel Adams e Imogen Cunningham. Eles estavam interessados nela porque estavam interessados no México e na política mexicana; porque eles estavam interessados em Rivera; e porque, quando você vê a pequena Frida em pé ao lado do desajeitado Diego…bem, como você pode não se interessar?

Mas acima de tudo, eles amavam seu senso de estilo, seu carisma e uma energia pessoal, que as primeiras fotografias deixavam claro que era palpavelmente erótica. “As gringas realmente gostam muito de mim e tomam conhecimento de todos os vestidos que eu trouxe comigo. Seus queixos caem ao ver meus colares de jade e todos os pintores me querem para posar para eles”, ela escreveu para a mãe, de São Francisco, em uma ocasião.

A importância desses trajes para Kahlo, e para sua formação de si mesma, ficou mais clara do que nunca em 2003, quando um banheiro adjacente ao quarto de Kahlo na Casa Azul, onde ela viveu a maior parte de sua vida, foi destrancado e um guarda-roupa de trajes vibrantes foi descoberto.

Kahlo não apenas se pintou nesses trajes, ela também posou para fotografias e apareceu em público neles. Por muito tempo presumiu que ela os usava para agradar a Rivera (tanto Kahlo quanto Rivera eram membros do Partido Comunista, entusiastas da Revolução Mexicana e da cultura nativa mexicana). Mas, desde 2003, essa suposição começou a desmoronar.

Mais provavelmente, o impulso de Kahlo em direção ao autorretrato, a manipulação de sua personalidade, foi um produto da dor. Seu guarda-roupa da Casa Azul incluía uma série de aparelhos ortopédicos. Uma seção inteira da Coleção Gelman – uma exposição dedicada à Frida no Museu Victoria & Albert, em Londres, Reino Unido – é dedicada a estes e aos vários medicamentos que Kahlo tomou em sua vida. É um lembrete de que não há como pensar em Kahlo, não há como lidar com o poder de sua arte, sem pensar em dor.

Todos nos acostumamos com a dor de Kahlo. Ela nunca. A dor é sempre fresca e sempre incomunicável. Ela se fragmenta e impede todos os esforços para manter um eu coerente. Por isso, também derrota o desejo de ser verdadeiramente compreendido.

Sua dor foi persistente. Frida Kahlo contraiu poliomielite aos seis anos de idade. Na época, ela inventou um amigo imaginário para ajudá-la a lidar com a dor. A perna direita foi deformada em decorrência da doença e deteriorou-se por toda a vida. A perna desenvolveu úlceras, tumores e, finalmente, gangrena, exigindo a amputação dos dedos e, em 1954, toda a parte abaixo do joelho. Apesar de ter se recuperado o processo foi traumático e a deixou com sequelas. Nesse contexto, o amigo imaginário teve um importante papel. Gannit Ankori observa, em uma biografia de 2013, que isso marca o início da “divisão” de Kahlo de si mesma, uma resposta psicológica comum ao trauma e à dor, que mais tarde estimulou seu autorretrato.

Kahlo sofreu sua próxima infelicidade física quando tinha 18 anos. Ela estava com o namorado em um ônibus que colidiu com um bonde elétrico. Várias pessoas morreram no acidente. A coluna vertebral de Kahlo, escreve Ankori em seu livro, “foi quebrada em três lugares; sua clavícula e duas costelas estavam quebradas; sua perna direita teve onze fraturas e o pé direito foi esmagado; o ombro esquerdo estava sem articulação e a pélvis quebrada em três lugares”.

Ela também sofreu, dizem os prontuários, “uma ferida abdominal penetrante causada pelo corrimão de ferro entrando no quadril esquerdo, saindo pela vagina e rasgando o lábio esquerdo”.

Por que contar tudo isso? É bem conhecido. Mas, acho, tende a entrar em curto-circuito, substituído por um halo abstrato de “sofrimento” e sublimado no glamour de Kahlo, seu status de ícone feminista.

É assim que a entendemos ou tentamos. Mas nós não podemos. Kahlo não era, enquanto pintava, um ícone. Ela era um ser humano, uma mulher, filha, irmã e esposa. Tal era a constância de sua dor que ela “vivia morrendo”, segundo um amigo. Mas ela também foi, surpreendentemente – e apesar de muitas traições cruéis -, apaixonada pela vida.

Fonte:
The Washington Post-You might think you know Frida Kahlo, but you’ll never understand her pain

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