Livros recém-lançados de Fernando Pessoa trazem ao Brasil um lado pouco conhecido de sua obra

‘Contos completos’ e ‘O banqueiro anarquista e outros contos escolhidos’ mostram a prosa ficcionista do poeta fingidor

O poeta portuguêsFernando Pessoa Foto: Mônica Torres Maia / Arquivo
O poeta português Fernando Pessoa Foto: Mônica Torres Maia / Arquivo

Ruan de Sousa Gabriel

O português Fernando Pessoa (1888-1935) não se limitou a criar heterônimos poéticos, como o angustiado engenheiro naval Álvaro de Campos, o monarquista Ricardo Reis e o antimetafísico Alberto Caeiro. Pessoa também inventou outros personagens — em prosa —, como um banqueiro “consciente e convicto” de que a boa prática anarquista levava ao acúmulo de capital. E um português da província que, em um golpe de bêbado, livrou-se de uma dívida e ainda inspirou a expressão “conto do vigário” — o malandro não era sacerdote, mas se chamava Manuel Peres Vigário. Vigário e o banqueiro são personagens de contos de Pessoa publicados na imprensa lusa.

Salvo “O livro do desassossego”, assinado pelo semi-heterônimo Bernardo Soares, a prosa de Pessoa permanece quase desconhecida deste lado do Atlântico. Dois lançamentos recentes pretendem apresentar o leitor brasileiro aos textos do poeta fingidor: “Contos completos, fábulas & crônicas decorativas” (Carambaia), prefaciado e anotado pelo poeta angolano Zetho Cunha Gonçalves, e “O banqueiro anarquista e outros contos escolhidos” (Nova Fronteira), organizado pelo poeta carioca Alexei Bueno.

“Contos completos” traz 14 textos em prosa, como “O automóvel ia desaparecendo”, escrito para a campanha publicitária de uma marca de tintas para carros, e “O marinheiro”, peça teatral simbolista que inspirou um poema de Álvaro de Campos. Há ainda três narrativas inéditas em livro e uma complemente inédita: “Crônica decorativa II”, de 1914, na qual o narrador descobre que “a Pérsia realmente existe”. “O banqueiro anarquista…” reúne 25 textos escritos entre 1907 e 1935. Deles, 19 eram inéditos no Brasil, como “A very original dinner”, que Pessoa escreveu em inglês e depois traduziu para o português. Ambas as antologias incluem três traduções pessoanas de contos do americano O. Henry. Pessoa foi educado na África do Sul e escreveu seus primeiros versos em inglês.

— A novidade dos contos de Pessoa não se deve simplesmente ao fato de eles não serem conhecidos do leitor, mas de serem uma literatura realmente nova, com a qual não estamos acostumados. Pessoa renovou o que entendemos por conto — afirmou Caio Gagliardi, professor de literatura portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “O renascimento do autor: autoria, heteronímia e fake memoirs” (Hedra). — O leitor que buscar nesses textos diversão fácil ou imediata pode se decepcionar.

Pessoa trouxe para a prosa as especulações filosóficas que sustentam sua poesia e acrescentou ainda outros ingredientes: ironia, humor negro e um flerte com o fantástico. Os contos privilegiam a reflexão — as “Fábulas para as jovens nações” terminam em questionáveis conselhos morais — e investem pouco na descrição de acontecimentos ou na construção de personagens tão esféricos quanto os heterônimos.

— Na ficção pessoana, o arcabouço estritamente ficcional é muito tênue — diz Alexei Bueno. — Em “O banqueiro anarquista”, há uma breve caracterização de dois personagens e uma estrutura dialogal muito simples, quase esquemática. Nada das marcas de um ficcionista como Balzac, Dickens ou Dostoiévski. O prosador é nele mais forte do que o ficcionista. E o poeta vem acima de tudo.

O banqueiro anarquista, aliás, parece emular o pensamento político de Pessoa, que era avesso às ideologias revolucionárias da esquerda, mas também rejeitava o reacionarismo da direita. No prefácio aos “Contos completos”, Cunha Gonçalves arrisca chamar o banqueiro de “quiçá um semi-heterônimo”. Mas não nos esqueçamos: o poeta era um fingidor.

— Na imensa obra em prosa, não na prosa de ficção, encontramos as opiniões de Pessoa sobre os mais variados assuntos, da religião à economia, da estética à política, e de maneira mais clara e direta, obviamente, do que na poesia — afirma Bueno. — Podemos falar que o banqueiro anarquista era um alter ego de Pessoa no sentido ideológico e paramos por aí. O banqueiro, afinal, era um homem que sabia ganhar dinheiro, coisa que Pessoa nunca soube fazer.

Capa do livro
Capa do livro “Contos completos, fábulas & crônicas decorativas”, de Fernando Pessoa Foto: Reprodução

“Contos completos, fábulas & crônicas decorativas”

Organização: Zetho Cunha Gonçalves

Editora: Carambaia

Páginas: 160

Preço: R$ 49,90

Capa do livro
Capa do livro “O banqueiro anarquista e outros contos escolhidos”, de Fernando Pessoa Foto: Reprodução

“O banqueiro anarquista e outros contos escolhidos”

Organização: Alexei Bueno

Editora: Nova Fronteira

Páginas: 320

Preço: R$ 49,90

Trecho de “O banqueiro anarquista”:

“Um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia que o conduz, é materialmente só uma coisa — um regime revolucionário. Ora, um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras, um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposto à sociedade por uma parte dela — aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única coisa que ele é materialmente , imediatamente , é um regime militar despótico, adapta-se a um regime militar despótico. A ideia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram, desapareceu por completo darealidade social, que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária — e tanto mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar — é uma sociedade guerreira de tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto; nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O Império Romano e o seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e o seu despotismo militar. E você verá o que sai da Revolução Russa… Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre… Também, o que era de esperar de um povo de analfabetos e de místicos?…”

oglobo

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