O velório que não chegou a ter a cadelinha morta a pauladas num Carrefour

‘Uma centena de cães correu diante das luzes oscilantes, e sentaram em cima de cada eletrodoméstico e de cada móvel restantes, como se fossem os donos’

O velório que não chegou a ter a cadelinha morta a pauladas num Carrefour
Capa do livro ‘Contos de Lugares Distante’, de Shaun Tan, editado no Brasil pela extinta Cosac Naify (Foto: Divulgação/Cosac Naify)
Por Hugo Souza

O portal G1 deu em primeira mão no início da tarde desta terça-feira, 18, que a polícia civil de São Paulo já concluiu o inquérito sobre o envenenamento, espancamento e consequente morte da cadela Manchinha no Carrefour de Osasco, episódio que aconteceu no último 28 de novembro e causou comoção nacional. A conclusão da polícia é que a responsabilidade pela morte do animal é tão somente do segurança que o espancou. Se condenado, a pena é de três meses a um ano de prisão, além de multa. O Carrefour não será responsabilizado pela terceirização de tão macabra atividade-meio.

Há poucos dias, a 7ª Vara Cível da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, determinou que o Carrefour da Barra não pratique “atos que possam ocasionar o extermínio de gatos eventualmente existentes no interior do supermercado”, ou “crime de maus-tratos com resultado morte”. A decisão saiu em resposta a uma ação impetrada na Justiça em setembro, pelo Núcleo de Prática Jurídica das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), a pedido da ONG Oito Vidas.

Nesta semana, outro caso de espancamento e morte de uma cadela vem causando indignação, após um vídeo com imagens muito duras do animal morto no colo da dona, uma idosa, circular nas redes sociais e ir parar no noticiário de TV. Aconteceu em Bom Jesus do Itabapoana, no norte fluminense, no lar de uma família aparentemente acossada, enervada, determinada pelas dificuldades do dia-a-dia. O vídeo foi feito por uma mulher, que, de celular em punho, ora mostra o animal morto no colo da dona, sua avó, ora mostra o rosto do marido (“agora ex-marido”, diz ela), o espancador, já entretido com outros afazeres, após sujar as mãos de sangue – talvez convencido, em seu íntimo, da absolvição pela atrocidade que tinha acabado de cometer, porque, afinal, Deus já lhe deu a vida como pena.

Também nesta terça, dia em que saiu a notícia sobre a conclusão do inquérito sobre a morte violenta da cadela Manchinha no Carrefour de Osasco, o Carrefour de Osasco pegou fogo, 20 dias após Manchinha morrer como morreu. Começa assim o conto “Velório”, do escritor australiano Shaun Tan, que se notabilizou por explicar para as crianças, com sensibilidade ímpar, o quão duro, cão, é o mundo lá fora: “aconteceu um incêndio na casa de um homem que, poucos dias antes, havia matado seu cachorro a pauladas”.

Este Opinião e Notícia reproduz abaixo, “em primeira mão”, o que se segue no conto “Velório”, de Shaun Tan, a título do velório que Manchinha não teve, “incinerado” que foi, às pressas, seu corpinho peludo estropiado até não aguentar mais:

“Ele era um homem forte e por isso conseguiu salvar todos seus pertences sozinho, carregando-os da casa para o jardim. Assim que terminou, uma centena de cachorros de todos os tamanhos e formas correu diante das luzes oscilantes, vindos das trevas ao redor, e prontamente sentaram em cima de cada eletrodoméstico e de cada móvel restantes, como se fossem os donos. Além de não deixarem o homem chegar perto e rosnar ferozes quando ele tentava bater neles, ficavam estáticos, olhando impassivelmente para as chamas”.

“O fogo era de uma intensidade surpreendente e a casa veio abaixo em questão de minutos. O homem, enfurecido, saiu procurando uma arma. Como se tivessem entendido, os cachorros pularam para o chão e começaram a circular calmamente pelas trevas enfumaçadas, revezando-se para urinar sobre cada objeto salvo pelo homem. Eles uivaram apenas uma vez, nem muito alto nem muito demorado, mas o uivo continha tanta melancolia que até quem não podia ouvi-lo revirou-se na cama”.

“E então eles se foram, espalhando-se pelas ruas e pelos becos, atentos ao som de suas próprias patas arranhando as calçadas de concreto, o chão que já fora de terra escura e selvagem. Eles não se voltaram para os últimos focos de incêndio na grama, nem mesmo para o homem que retornara segurando um pé de cabra inútil e estava parado sobre as cinzas, sozinho e chorando. Os cachorros só pensavam em seus lares: no cheiro das casinhas quentinhas, nos cobertores macios e nas camas em que os humanos dormiam, aqueles que lhe haviam dado nomes tão peculiares”.

O conto “Velório” está no livro infanto-juvenil “Contos de Lugares Distantes”, editado no Brasil pela extinta Cosac Naify. Se “o Haiti é aqui”, em todos os sentidos (inclusive no dos militares brasileiros que lá estiveram e que agora cá estão, no governo), sobre os lugares distantes de Shaun Tan, então, nem se fala. As “trevas enfumaçadas” estão sempre logo ali.

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