Quando a solidão lhe abraçar, faça dela seu abrigo

Nas horas de ninho vazio somos obrigados a arrumar com esmero o nosso refúgio para vindas e idas   / Foto: Pixabay

Nas horas de ninho vazio somos obrigados a arrumar com esmero o nosso refúgio para vindas e idas  Foto: Pixabay

Por Malu Silveira

Lá estava eu, encolhida num cantinho daquele teatro pequeno e lotado. Para ficar mais perto da saída, podendo escapar assim que possível, terminei no pior dos assentos. Uma das cadeiras estava quebrada, o que me fez ficar, obrigatoriamente, de lado durante a peça inteira. Não havia uma companhia ao meu lado. O amigo que encararia o passeio comigo furou. Quer dizer, não ele, coitado, e sim o pneu do seu carro, que deixou ele na mão ao sair de casa todo alinhado para fazer bonito do meu lado. A amiga topa-tudo até que tentou chegar a tempo, mas o motorista do aplicativo de viagens parece que adivinhou minha aflição e também não colaborou com a missão.

Naquela peça – que havia ido para prestigiar um colega querido que também era querido para outra pessoa, infelizmente não tão querida para mim – era como se eu fosse uma estranha no ninho. Não havia amigos para trocar confidências ao ouvido, namorado para colocar a cabeça no ombro, nem muito menos conhecidos para comentar amenidades.

Aquele definitivamente não era o nirvana em que você se descobre feliz sozinho. Nos poucos momentos em que consegui me concentrar, no entanto, gravei o diálogo entre o ator principal, um Don Juan inconsequente e uma das personagens, uma garota de programa que tentava seduzi-lo. A moça, tão jovem, já havia aprendido um dos maiores sofrimentos do ser humano.

– Você tem medo de ficar só?

– …

– Pois eu tenho. Às vezes acho que o ser humano se relaciona com o outro apenas para não ficar só.

Quando o espetáculo acabou, aproveitei minha condição de estranha e sai à francesa. O que foi pior, uma vez que a entrada estava vazia e eu logo me deparei com a cena: um grande-amor-da-vida, aquele que também queria muito bem ao meu colega, encostado num carro de frente para os portões do teatro, dando um beijo à la desentupidor de pia numa outra mulher. Choque absorvido, fiz a caminhada de no máximo vinte passos de volta para o carro, pela beira do rio, na cidade escura e vazia, sem arriscar olhar para trás, segurando as lágrimas de decepção. Engraçado que poderia estar rodeada pela população da China, mas aquele continuaria sendo um dos momentos da vida em que eu me senti mais absurdamente solitária.

Alguns meses depois, mais madura, atendi um telefonema num plantão de voluntariado e, durante a conversa, escutei da pessoa o desespero que ela sentia ao se dar conta que a solidão já a havia abraçado. Aquele desabafo, assim como o diálogo entre os dois atores da peça, também me pegou de surpresa, uma vez que nunca havia parado para pensar que esta sensação nem sempre nos pega de repente, como a felicidade de saber que ganhou na loteria.

Em muitas situações, ela é sorrateira e, assim como quem não quer nada, vai se apossando do ambiente, como aroma de comida, entrando nos cômodos da casa sem que ninguém perceba. Até que se instala de vez e capta, enfim, a nossa atenção. Mas, ao contrário de comida gostosa, nem sempre a solidão cai bem no nosso organismo.

A verdade é que fome dói, minha gente. E não é só fome literal, aquela do estômago. A ânsia de ser amado também causa dores muito desconfortáveis. Quem dera fosse fácil acabar com o vazio do coração com um pedido no iFood.

Aquele atendimento continuou provocando reflexões muito tempo depois de colocar o telefone de volta no gancho. Me peguei matutando sobre a questão nos domingos à noite, quando senti falta de uma parceria para o cinema; quando chorei de madrugada sem ter quem me consolasse; nas datas comemorativas sem ligações afetuosas ou apimentadas; nos exames complicados, quando quis segurar a mão de alguém; nas horas de carência, quando precisava de um cheiro no cangote que fosse.

Enxerguei ela em tantos instantes, quando escutei um aviso de demissão e voltei chorando para casa sem ninguém do lado para me convencer a parar no meio do caminho e fazer algo bem excitante; ao ver um casal apaixonado na praça de alimentação e lembrar que eu devorava meu prato sozinha, sem um parceiro para dividir iguarias; quando deixei de me envolver com outras pessoas por medo que, mais na frente, ela também partisse e mais uma vez eu me visse envolta nas garras de um monstrinho silencioso.

Estar só por opção não se chama solidão. Isso se chama solitude. Se enxergar sozinho por escolha do destino nem sempre é fácil de digerir. O gosto é amargo. Desce mais quadrado que cerveja quente no Carnaval. E talvez seja dessa forma mesmo, até que você passe a se conformar, gostar até, do sabor. Como axé quente na folia de Momo (quem nunca?).

Foi pensando exaustivamente neste assunto que enfim compreendi, tentando me lembrar desse entendimento nos momentos de maior desespero, que talvez sejam nas horas de ninho vazio que somos obrigados a arrumar com esmero o nosso refúgio para vindas e – por que não? – idas. Sempre na esperança de que o passarinho, assim como voar, também aproveitar seu ninho sozinho. Por isso, deixa eu te acalentar: quando a solidão lhe abraçar, faça dela seu abrigo.

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