Falta razão às coisas feitas pelo coração

Cinco anos depois do sucesso de público e crítica do longa Faroeste caboclo, o diretor René Sampaio volta à obra de Renato Russo e sua Legião Urbana com Eduardo e Mônica

RODRIGO FONSECA *, Especial JB

Feito feijão com arroz, a mistura romântica entre um moleque de 16 anos – fã de jogo de botão e novela – e uma universitária na raia dos 20 anos – com tinta no cabelo e Manuel Bandeira nas ideias – arranca suspiros e provoca identificações há pelo menos três décadas, desde que o hit “Eduardo e Mônica”, na voz de Renato Russo, chegou às rádios. É hora de estender o encanto desse casal, um dos mais cultuados (e invejados) do Brasil, aos cinemas. Tá no forno, em via de montagem, uma releitura audiovisual dessa love story improvável, imortalizada nos acordes da Legião Urbana, numa faixa do disco “Dois”, de 1986. Eduardo é Gabriel Leone; Mônica é Alice Braga. No comando das carrapetas está o diretor René Sampaio, cria do Distrito Federal. Há cinco anos, o realizador de curtas-metragens como “Sinistro” (2000) levou outra canção mítica de Renato, “Faroeste Caboclo”, à telona, na forma de um comovente thriller sobre armas e amores que vendeu cerca de 1,5 milhão de ingressos por aqui, papou um balde troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e foi ovacionado no Festival de Toronto, no Canadá – hoje encarado como a maior vitrine para o Oscar. A estreia será em 2019. E o mercado exibidor já iniciou a contagem para o que promete ser um dos fenômenos nacionais do ano que vem.

Macaque in the trees
Da poesia para o cinema, Alice Braga e Gabriel Leone dão vida ao casal que se completa “que nem feijão com arroz” mas expõe a impossibilidade de se amar na plenitude (Foto: Janine Moraes/Divulgação)

“O amor romântico coloca a gente no limite, e, dentro do romantismo, essa canção do Renato Russo leva a gente a discutir a impossibilidade de se amar na plenitude, diante de todas as divergências de todas as especificidades de cada um”, explica René, que trouxe vários parceiros do longa anterior para a recriação da realidade Brasília em 1986, onde se passa o amor de Eduardo por Mônica. “Eu sempre me pergunto que Brasília é esta em que filmo, pois, a cada minuto, ela se revela para mim de uma forma nova. Cresci em uma Brasília que teve a Legião como um componente formativo de toda uma geração, ali entre os anos 1980 e 1990. Meu esforço, aqui, foi buscar uma Brasília fora do ambiente político, falando de sua gente. Gente como qualquer gente. É um amor universal o desse casal”.

Como não se mexe em time que está ganhando, René regressa ao cosmos do Rimbaud do B-Rock ao lado de sua parceira de “Faroeste…”, a produtora Bianca de Felippes (de sucessos como “Carlota Joaquina”), que ciceroneou o Jornal do Brasil numa visita aos sets, no DF.

“Trouxemos mais de 80 pessoas do Rio pra Brasília, onde ficamos por quase dois meses para dar vida, da melhor forma possível, a uma história que frequenta a cabeça do Brasil todo há mais de 30 anos. Todo mundo tem um ‘Eduardo e Mônica’ na cabeça… uma história sobre diferentes que se encantam”, diz Bianca, produtora do espetáculo “Renato Russo – O musical”, com Bruce Gomlevsky, hoje em cartaz no Centro Cultural João Nogueira/Imperator, no Méier. “Eu tive o prazer de ter conhecido Renato numa festa de aniversário do Marco Nanini, em 1995. Quase tive um troço quando vi aquele homem todo de branco, muito tímido perto daquela galera de teatro, que fala alto”.

No filme, Gabriel Leone (um dos jovens atores mais elogiados da TV neste momento, vide seu desempenho na série “Onde nascem os fortes”) constrói Eduardo valorizando a inquietude de um rapaz criado pelo avô (Otávio Augusto) numa vila militar. Já Mônica é um signo de transgressão. O papel foi confiado à atriz Alice Braga, estrela de brilho internacional, respeitada lá fora desde que encantou Cannes com sua atuação em “Cidade Baixa” (2005). A dupla fundiu seus talentos em sets montados em Brasília, ao longo do mês de julho, com uma rebarba no Rio, em agosto.

“A canção fala de aceitação, da superação das diferenças, da possibilidade de olhar o outro sem barreiras. Amar é saber respeitar o outro”, define Alice, atriz brasileira de maior visibilidade no exterior nas duas últimas décadas não apenas pelo prestígio global (ainda vigente) de “Cidade de Deus” (2002), mas por sucessos como o filme “Eu sou a lenda” (2007) e a série “A Rainha do Sul” (2016-18). “É impossível viver essa história para a qual o René nos trouxe sem falar de Brasília, sem entender que estamos falando daquela cidade. A conexão que fazemos com os anos 1980 passa pelo que Brasília foi naquela época: uma cidade nova”.

Seu parceiro de cena concorda: “A solidão é quase uma interseção entre essas duas pessoas. E, nessa vivência da solidão, a gente teve a sorte de poder trabalhar muito o silêncio, a rubrica. Às vezes, a gente recebia cenas com uma fala só: o desafio era preenchê-las de emoções”, diz Leone, que em breve será visto como o cantor Roberto Carlos no filme “Minha fama de mau”, sobre Erasmo Carlos. “Eu sou fãzaço do Renato Russo, mas me considero um fã bastardo, pois era muito pequeno quando ele morreu, em 1996. É uma sorte fazer parte de seu universo e entender essa Brasília que tinha pouco mais de 20 anos quando a ditadura acabou”.

Luz de Brasília ajudou

Há uma linha narrativa de reflexão sobre amadurecimento no roteiro de “Eduardo e Mônica”, que combina os talentos de Matheus Souza, Claudia Souto, Jessica Candal e Michele Frantz em seus créditos. Para a direção de fotografia foi escalado Gustavo Hadba, o responsável pela luz do (potencial) candidato brasileiro ao Oscar de 2019, “O Grande Circo Místico”. Foi Hadba quem fotografou “Faroeste…”. “O que o Gustavo faz na luz é artes plásticas”, avalia René.

“Este filme pede uma luz suave, um pouco mais fria, do que a iluminação crua do ‘Faroeste…’, e o céu de Brasília ajuda muito a encontrar o tom preciso. Neste filme, eu sou a Mônica e o René é o Eduardo”, brinca Hadba. “Se não estivesse tão associada a um ideal político, essa cidade seria vista nacionalmente de modo diferente, mais carinhoso. É um lugar maneiro demais como arquitetura, como paisagem natural”.

Para a concepção da cenografia, o diretor de arte Tiago Marques respeitou o realismo, mas trafegou (entre suas inspirações) nas franjas de dois diretores franceses: Michel Gondry, de “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (2004), e Jean-Pierre Jeunet, de “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (2001). “Houve um esforço de se incorporar Van Gogh, Rimbaud, a poesia de Bandeira… É um universo em que a vida de Mônica vai ganhando novas cores com a chegada do Eduardo, e vice-versa, conforme um vai completando o outro. E há uma surpresa, envolvendo girassóis, para surpreender o público”, explica.

Após o lançamento de “Faroeste caboclo”, René foi fazer TV, dirigindo episódios da série “Dupla identidade”, com Bruno Gagliasso como psicopata – um produto de 2014 elogiado até hoje. Mas o desejo do filme contando os percalços amorosos de Eduardo e Mônica já vinha desde que rodava a saga de João de Santo Cristo. “No fundo, a obra de Renato me abriu a chance de falar da tolerância”, diz René. “Meu esforço foi falar dela com amor. Adaptar uma canção é tirar dela um universo. No caso, um universo de opostos que se atraem”.

*Roteirista e crítico de cinema

Jornal do Brasil

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