Para onde vamos?

Graziella Guiotti Testa Bruce*

Na primeira aula de Introdução à Ciência Política, a indicação de leitura é um texto do Philippe Schmitter que diz que para que um ato ser político é preciso que haja conflito e que haja cooperação.

O conflito é sintoma de que há voz e liberdade para participação, uma vez que diferenças sempre há e os bens disponíveis são escassos. Quando desaparece o conflito, significa que não mais existe voz e as diferenças estão sendo reprimidos.

Por outro lado, é preciso que haja cooperação, isto é, é preciso que o conflito seja processado dentro de um quadro em que ambas as partes concordem não extrapolar determinadas regras estabelecidas antes dele iniciar. Significa que todo mundo concorda em não mudar as regras do jogo durante o jogo.

A crise econômica devastadora que enfrentamos é um teste para a força dessas regras, que também chamamos de instituições. Tivemos um quadro de uma presidente que não conseguiu construir maioria no Congresso e a resolução aconteceu fora do quadro de integração, por meio do uso deturpado da regra que rege presidencialismos.

Vimos a caravana de um ex-presidente ser alvejada e não encaramos com a gravidade que deveríamos ter encarado. O ponto alto desse processo foi o assassinato da vereadora de uma das maiores cidades do país, representante de uma parcela da população historicamente sub-representada num crime que permanece sem solução.

Vimos um grupo organizado parar o país e processar o conflito numa esfera perigosa buscando atender demandas que não foram canalizadas pelos meios que lhes seria de direito. Vimos a tragédia anunciada do incêndio de nossa história, nossa ciência, nossa identidade, o triste resultado de uma política de desvalorização da ciência e da educação.

A violência política não é novidade. Não é novidade nem no Brasil nem em lugar nenhum. Ainda assim, o esfaqueamento do candidato que apregoa o armamento da população mais parece uma alegoria de um livro de realismo fantástico que não poderia representar melhor o momento que vivemos. Quando as regras para se processar o conflito deixam de ser seguidas, ninguém mais está seguro.

O escopo do liberalismo político apregoado desde a revolução gloriosa é justamente o da importância de se proteger as liberdades individuais, de fala, de manifestação, de voto, de participação, de direito ao próprio corpo e às próprias escolhas. Inclusive aquelas que são diferentes das minhas porque amanhã eu vou querer poder exercer as minhas apesar da discordância de tantos outros.

O resultado dessas eleições é o mais importante talvez desde 1960. Nossa Constituição cidadã está no momento de mostrar a que veio porque é em momentos como este que as normas são testadas e, quiçá, se consolidam.

Nunca foi tão necessário relembrar a importância de se ter direitos que uma geração inteira deu como garantidos. E não são. Relembro de Tocqueville que alertava que a liberdade nunca deixará de ser ameaçada.

Não sei se pela distância ou se pela genialidade, a melhor definição do momento veio de Valter Hugo Mãe: O Brasil está em guerra consigo mesmo. As trincheiras estão armadas e as armas carregadas. Não sabemos quem declarou a guerra, mas podemos largar os rifles e deserdar. Deserdemos, meus caros, deserdemos.

*Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e professora da Universidade de Brasília.

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