A GUERRA DO FIM DO MUNDO, DE MARIO VARGAS LLOSA

A Guerra de Canudos nas mãos de um mestre da literatura.

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Dentre os grandes escritores latino-americanos (talvez com exceção dos argentinos), Mario Vargas Llosa possui a característica de uma narrativa mais ligada aos fatos e menos ligadas ao desenvolvimento de emoções (ou em alguns casos, da tal “emotividade”). Suas obras narram os acontecimentos de forma mais sóbria do que outros autores, como Gabriel Garcia Márquez, Isabel Allende e Jorge Amado, apenas para ilustrar alguns.

Em A guerra do fim do mundo – obra frequentemente comparada a Os sertões, de Euclides da Cunha – o tom principal é quase jornalístico. Isso se pode explicar, talvez, uma vez que o romance é baseado em fatos reais, a guerra de Canudos. Mas vale lembrar que romances semelhantes, como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, apesar de ser baseado na formação de uma civilização, possui, em vários momentos, um tom mais ligado às emoções humanas, quase chegando ao mágico, apenas centímetros de se transformar em uma obra fantástica.

Um quase-épico, A guerra do fim do mundo proporciona momentos de “alívio” ao leitor em meio a tantas descrições de fatos que se entremeiam e da quantidade de personagens que continuam surgindo. Esses momentos levam o leitor a se deparar com situações mais humanas e menos políticas, em um contínuo despertar de religiosidade e esperança em personagens que vão desde o excluído da sociedade, passando pelos desacreditados e chegando aos que demonstram uma maldade nata. O poder de transformação do Conselheiro talvez seja o único momento ou situação no início da obra que, de alguma forma, se aproxima de uma situação “além dos fatos”, ou “além da matéria”.

Mas mesmo essas descrições são sóbrias. Se os fatos da conversão de bandidos e homens perigosos em seguidores do Conselheiro têm algo de quase sobrenatural, por outro a situação se mantém dentro de uma realidade, pois tais acontecimentos são corriqueiros no ser humano. Note-se então, que o mais perto do “inacreditável” que Vargas Llosa chega é, na verdade, o “inacreditável retórico”, ou seja, aquele do qual temos provas diárias no nosso dia a dia, e nunca de um milagre em que entraríamos em um mundo mágico.

A narrativa jornalística que domina a obra é entrecortada com descrições de personagens novos a todo o momento, personagens estes que, em sua maioria, servirão para ilustrar de que forma foi formado o grupo de seguidores do Conselheiro. Em um momento temos uma quebra de narrativa, onde a terceira pessoa passa para a primeira e logo desaparece. Temos também a reportagem do Jornal de Notícias, em que o tom, ironicamente, parece ser um motivo para vangloriar políticos e servir, literariamente, como crítica ao pedantismo com que os detentores do poder referem-se a si mesmos.

Como um grande escritor que é, Vargas Llosa usa destas técnicas tanto para enriquecer a paisagem da narrativa quanto para maximizar a experiência do leitor, que se depara então com uma miríade de enfoques sobre o conflito em Canudos.

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À medida que a narrativa e o enredo vão se desenvolvendo, os personagens crescem em importância, porém lentamente, nunca permitindo que o tema histórico – que é o principal – seja menos importante em destaque que qualquer questão humana isolada e não relacionada à Guerra de Canudos.

É clara a intenção de Vargas Llosa de criar uma obra histórica, mesmo que romanceada, mas nunca deixar que os fatos lhe fujam ao controle em detrimento de subenredos totalmente alheios ao conflito. Nesse sentido, pode-se dizer que o romance é mais livro histórico que romance propriamente dito, pois não se perde em sua intenção. E isso certamente requer um domínio da escrita em todos os momentos, linha a linha, já que o leitor sempre se atém mais ao que lhe é familiar do que ao que lhe é alheio ou distante. Assim, é muito fácil que um drama pessoal de algum personagem tome a dianteira do enredo, pois todos os leitores se identificariam com as questões humanas, e poucos (de maneira íntima e pessoal) com uma guerra.

Mas como a guerra é o cavalo a ser domado, Vargas Llosa mantém os personagens na superfície sem torná-los protagonistas e evitando correr o risco de transformar a guerra em pano de fundo. Diferentemente de quase todos os romances, aqui os personagens servem à guerra e não o oposto.

Mas a habilidade do autor é ainda maior quando chegamos aos últimos momentos da obra, quando a guerra acabou e o que sobra é a destruição – e as pessoas que sobreviveram. Nesse momento os personagens tomam a dianteira do enredo e o final se foca neles, com o intuito de relaxar e acalmar a escrita e lembrar que não, este não é simplesmente um relato histórico.

Se os personagens estavam lá o tempo todo para apoiar a História, Vargas Llosa conseguiu equilibrá-los para que, mesmo em segundo plano, fossem humanos o suficiente para depois valorizá-los sem causar um estranhamento no leitor. Com essa técnica, consegue fazê-los subir à superfície, tornar-se o ponto alto da conclusão do romance e, claro, manter o livro dentro do que se chama romance histórico e não apenas obra histórica. As últimas páginas são o after-taste deixados no paladar do leitor, e esse after-taste é sobre pessoas, sobre o lado humano que vive e sobrevive a todos os dramas.

Mario Vargas Llosa conseguiu realizar o melhor dos dois mundos nesta grande obra: desenvolveu um enredo em que a guerra é a protagonista, mas criou personagens que, se na maior parte do tempo servem ao relato da guerra, são grandes e humanos o suficiente para vir à tona como seres reais, únicos e críveis, humanizando não só a guerra, mas o romance, sem causar um estranhamento no leitor nem fazer com que este duvide do que está lendo.

fonte: obvious/JULIAN BARG

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