Criminalização de “fake news” fere liberdade de expressão, defendem especialistas

Charge do Podviski (sputniknews)

Gustavo Garcia
G1

Projetos de lei que tornam crime a divulgação das chamadas “fake news” (notícias falsas) violam as liberdades de expressão e de imprensa. Pelo menos é o que afirmam três especialistas ouvidos pelo G1 sobre propostas que estão sob análise do Senado e da Câmara e que preveem, inclusive, a pena de prisão para quem espalhar informação que “sabe ser falsa”.

Um dos projetos, de autoria do senador Ciro Nogueira (PP-PI), prevê detenção de seis meses a dois anos, além do pagamento de multa, para quem divulgar “fake news” relacionadas à saúde, à segurança, à economia, ao processo eleitoral ou que afetem o interesse público. Caso a divulgação da notícia falsa seja feita através da internet, a pena é mais grave: reclusão de um a três anos e multa.

VANTAGENS – A proposta prevê ainda o aumento da pena – de um a dois terços – se a pessoa divulgar “fake news” para obter vantagem própria ou para terceiros. O projeto está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e aguarda a definição de um relator que dê encaminhamento ao tema.

Na Câmara, outras três propostas têm o mesmo objetivo: punir a divulgação de informação falsa. É o caso do projeto do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS) que tem teor semelhante ao da proposta de Ciro Nogueira, mas o tempo de reclusão pode chegar a até seis anos e meio.

DETENÇÃO – A proposta do deputado Jorge Côrte Real (PTB-PE) prevê detenção de um a dois anos para quem divulgar ou compartilhar, por qualquer meio de comunicação social, “informação falsa ou prejudicialmente incompleta”. Já o projeto do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) diz que “constitui crime divulgar ou compartilhar, por qualquer meio, na rede mundial de computadores, informação falsa ou prejudicialmente incompleta” em desfavor de pessoas ou empresas.

Hauly prevê, no entanto, pena de detenção de dois a oito meses, além do pagamento de multa. A pena de reclusão tem de ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. Já a pena de detenção pode ser cumprida no regime semiaberto ou aberto, ou seja, trata-se de um regime mais brando.

MULTA – Hauly também é autor de outro projeto sobre o tema. O texto estabelece multa de R$ 50 milhões para empresa de internet dona de rede social que não apagar notícias falsas publicadas por usuários. As propostas da Câmara tramitam em conjunto e estão na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.

Para o advogado Leandro Porto, do Observatório de Liberdades e Direitos Civis, os projetos são “inconstitucionais” e ferem a liberdade de expressão. “É inconcebível, nos dias atuais, pensar em encarcerar cidadãos devido à divulgação de informação incompleta ou mesmo falsa. Ainda parece pior quando consideramos a possibilidade de se voltar a aplicação da lei contra a imprensa”, afirma Leandro Porto.

“MESMO BALAIO” – O constitucionalista Eduardo Mendonça também vê com “preocupação” as iniciativas legislativas. Ele diz que, na maioria dos casos, notícias são adjetivadas de “fake news” por pessoas que discordam de seus conteúdos. Para Mendonça, é preciso ter cuidado com a expressão. “Entidades que tratam do tema nem recomendam o termo ‘fake news’ porque ele joga no mesmo balaio coisas muito diferentes.

A notícia falsa deveria ser entendida como uma notícia que é deliberadamente falseada para enganar alguém. Isso é diferente de 90% daquilo que as pessoas chamam de ‘fake news’, simplesmente, porque discordam”, diz Eduardo Mendonça. O especialista em Direito Civil Carter Batista afirma que os projetos são “perigosos” quando analisados sob a ótica da liberdade de expressão.

FORO ESPECÍFICO – “Vai estabelecer a punição para a aquele que propagar ou difundir notícias falsas. Mas quem é que vai determinar a falsidade ou não da notícia? Vai existir um foro específico para isso?”, indaga Carter Batista.
Os especialistas lembram que, atualmente, já existem mecanismos para punir publicações ilícitas tanto na imprensa quanto na internet e nas redes sociais.

“Na mídia tradicional, você já tem uma longa tradição de ações judiciais que questionam o conteúdo supostamente ilícito, determinando remoção e responsabilizando o autor. A mesma coisa na internet, você tem o Marco Civil da Internet que tem um procedimento para a remoção de conteúdo e responsabilização autor”, explicou Mendonça. “Então, você não precisa criar um tipo penal, com todos esses riscos, e todo o autoritarismo inerente a tratar informação com direito penal, se você já tem essas ferramentas. É um exagero e é desnecessário”, acrescentou.

CRIMINALIZAÇÃO – Para o especialista, é “natural” que parlamentares queiram criminalizar a divulgação de notícias, uma vez que os agentes políticos se “sentem prejudicados pelas notícias que são críticas a eles”. “Esse termo ‘fake news’ se popularizou a partir do presidente norte-americano Donald Trump. Ele é um exemplo palpável de como isso pode ser um risco. Ele usa o termo para qualificar aquilo de que ele discorda”, afirma.

Ao justificar sua proposta, o senador Ciro Nogueira afirma que a divulgação das “fake news” é “conduta cada vez mais comum em nosso país”, por isso, deve ser punida. “Tais notícias deseducam e desinformam a sociedade em assuntos como saúde, segurança pública, economia nacional e política, servindo, frequentemente, como instrumento de manipulação da opinião popular”, opina Ciro Nogueira.

O senador também diz que nem sempre a divulgação de “fake news” pode ser enquadrada como crime contra a honra (calúnia, injúria ou difamação) e a atual legislação não prevê punições para esses casos. “O projeto busca criminalizar a divulgação da notícia falsa em que a vítima é a sociedade como um todo”, destaca o parlamentar do Piauí.

GRAVES DANOS – Jorge Côrte Real diz que há casos em que “boatos são tidos como realidade” e podem causar “graves danos a um número indeterminado de pessoas”. Ele cita o caso de uma mulher que foi linchada e morta, no litoral de São Paulo, em 2014, após boato de que ela praticava magia negra com crianças ter sido espalhado em redes sociais. Na mesma linha, Luiz Carlos Hauly diz que a disseminação de notícias falsas ou incompletas podem causar prejuízos “irreparáveis”.

“Atos dessa natureza causam prejuízos tanto para pessoas físicas ou jurídicas, as quais não têm garantido o direito de defesa sobre os fatos falsamente divulgados”, declara Luiz Carlos Hauly. Já Pompeo de Mattos lembra que existem pessoas que ganham dinheiro a partir da divulgação de notícias mentirosas.

“Com o seu amplo alcance, essas notícias se transformaram em uma fonte de renda para pessoas que criam sites para publicar especialmente mentiras que foram criadas propositalmente. O sucesso das informações falsas gera muitos acessos, que se transformam em renda para os donos dessas páginas”, conclui Pompeo de Mattos.

JUSTIÇA ELEITORAL – A possível interferência da divulgação de ‘fake news’ no processo eleitoral é uma das preocupações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) neste ano. Em outubro de 2018, os brasileiros vão às urnas para escolher presidente, governadores, senadores, deputados federais, estaduais e distritais.

A Corte vem discutindo com representantes de serviços de internet – como Google, Facebook, Twitter e WhatsApp – formas de combate à divulgação dessas notícias falsas. Até o próximo dia 5 de março, o TSE deverá editar regras mais detalhadas sobre o assunto em uma resolução sobre propaganda eleitoral.

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