Fotografando mulheres

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Acontece algo ali naquele instante, através da lente. Uma forma de verdade em que ambas nos revelamos. Eu deixo de posar de fotógrafa. E nós nos vemos. Duas mulheres

Por Maria Bitarello

Fotografar mulheres é diferente de fotografar homens?” Meu amigo indiano me perguntou isso ao ver essa série de fotos que fiz em Varanasi, na Índia, em dezembro passado. “Sim”, respondi, “assim como é diferente fotografar – mulheres ou homens – na Índia, no Brasil, no Benim”. Em minha mais recente viagem à Ásia, decidi lançar a mim mesma o desafio de fotografar apenas mulheres. Foi um desafio e tanto. Cheguei a pensar em desistir. E por isso mesmo a pergunta do meu amigo indiano (e fotógrafo), sem que ele soubesse, foi tão pertinente. Porque, sim, é muitíssimo diferente fotografar mulheres e homens na Índia.

Fotografar gente já é difícil. Sempre. Pelo menos pra mim. E foi por essa razão que comecei a fazê-lo . Porque havia o embaraço. Medo de fazê-lo sem a permissão e receber uma bronca, uma agressão. Excesso de dedos pra perguntar se poderia fazer a foto. E, aos pouquinhos, mineiramente, fui tentando e foi funcionando. Continuo achando difícil. Continuo fazendo.

Pois bem, partindo dessa premissa, em toda parte percebo que é mais fácil fotografar homens, e acredito que isso não tenha nada a ver com o fato de eu ser mulher. Em todos os lugares onde já fotografei – e no planeta Terra, de forma geral –, o patriarcado impera e acredito que seja por isso que os homens se sintam mais confortáveis em serem eleitos pra foto. A minha experiência é de que sempre é mais difícil chegar perto das mulheres, seduzi-las a se deixarem fotografar, levá-las a quererem ter seu retrato feito; na Índia inclusive. Mesmo sendo eu uma mulher que se aproxima com a câmera. Talvez porque elas não queiram disputar o centro da atenção com os homens. Talvez isso gere problemas pra elas depois. Talvez porque mulheres sejam vistas como propriedade de alguém (do pai, do marido) e fotografá-las requereria autorização de um deles. Talvez, talvez, talvez.

Tenho acompanhado alguns trabalhos pela internet e existem fotógrafos, hoje, que conseguem acesso a outras mulheres – em países onde a abordagem por uma pessoa de outro sexo seria mais problemática – e isso tem sido notado e valorizado na imprensa internacional. Em casos como esse, por exemplo, acredito que o gênero da fotógrafa seja imprescindível pro êxito da missão – além, naturalmente, do tempo dedicado a ela. Quando fotografo mulheres (e homens) em minhas viagens, na maior parte das vezes eu estou de passagem e paro uma pessoa na rua para fazê-lo ou visito um lugar uma única vez. Em muitas delas, como é possível perceber, eu peço permissão para tirar a foto. Se quero um retrato, preciso que o/a modelo me olhe através da lente. Em outras poucas, no entanto, passo um tempo com elas. 

Recebi um aprendizado instrumental de um fotógrafo: não se acanhe em deixar o/a modelo esperando. Como eu só fotografo com câmeras analógicas e não sou assim, digamos, uma exímia fotógrafa, às vezes deixar tudo pronto pro disparo me toma alguns desconfortáveis segundos. Desconfortáveis pra mim e pra quem espera. E esse desconforto já me levou a abandonar a ideia daquela foto, a fingir que a tirei ou a fotografar de qualquer jeito, sem foco ou medição de luz correta, só pra acabar com aquela angústia. Mas escolhi ouvir esse fotógrafo. Deixa esperar. Deixa. Aprenda a conviver com o desconforto. Você e ela.

E uma hora, mágica, a pessoa desarma. Hoje, por vezes, já estou com tudo pronto pro disparo mas continuo esperando, fingindo ajustar qualquer coisa. Cada foto numa câmera de filme é preciosa. Não quero ter pressa. Só disparo quando chega o momento sublime em que a pessoa deixa de posar. Mesmo que ela pisque o olho ou mexa a cabeça. E, nessa espera, fui eu também perdendo um pouco do medo, me desarmando. Porque acontece algo ali naquele instante, através da lente. Uma forma de verdade em que ambas nos revelamos. Eu deixo de posar de fotógrafa. E nós nos vemos. Duas mulheres.

fonte:outraspalavras

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