Família empresária converte usina desativada de açúcar e álcool em Usina de Arte

O Brasil rural está mudando. Centros de excelência na área de arte e cultura têm sido criados país afora pela iniciativa privada, alguns deles especialmente voltados à ressignificação de espaços e profissões de comunidades locais para que se tornem sustentáveis. Seguindo essa tendência, uma usina de processamento de cana de açúcar, desativada há 20 anos em Pernambuco, abriga desde 2015 o Festival Arte na Usina, sempre em novembro. E, no restante do ano, residências artísticas e literárias, oficinas de arte para pessoas de diferentes idades e uma escola de música para crianças e adolescentes. A última novidade do projeto é um jardim botânico, que começou a ser implantado no lugar.

Quem conta a história para o Fórum Brasileiro da Família Empresária-FBFE é o empresário Ricardo Pessoa de Queiroz, bisneto do fundador da Usina Santa Terezinha, no município de Água Preta, em Pernambuco. Ricardo é o idealizador dessa nova função para a usina inativa. “Arte para mim tem uma importância particular”, diz. “Nosso projeto tem uma função ampliada no sentido de ser o caminho de transformação de uma comunidade. É através dessas ferramentas que a gente quer disseminar a arte. Objetivo? Que as pessoas descubram um novo paradigma em suas vidas. Que elas, que por décadas trabalharam na usina sucroalcooleira, passem a ter novas perspectivas. Que os jovens comecem a se desconectar do passado e passem a se conectar com uma nova e boa realidade”, almeja. O empresário foi o anfitrião do FBFE Recife 2016.

Usina Santa Terezinha, vista de uma das janelas de suas antigas instalações, abre-se agora para as mais diversas manifestações artísticas (Foto: Andrea Rego Barros)


Água Preta fica na Zona da Mata Sul de Pernambuco, a 102 km de Recife, mas para chegar ao distrito, que tem o mesmo nome da Usina Santa Terezinha, e fica às margens do Rio Jacuípe, na divisa com Alagoas, são mais 20 quilômetros. A usina foi construída em um antigo engenho de cana de açúcar, como os descritos nos livros de José Lins do Rego, pelo bisavô de Ricardo, José Pessoa de Queiroz, sobrinho do presidente Epitácio Pessoa, que governou o Brasil de 1919 a 1922. Em decorrência da profunda crise que abalou o setor sucroalcooleiro suas máquinas realizaram a última moagem 22 anos atrás. Em Pernambuco já houve 60 usinas em ação, mas hoje são apenas 13.

No entorno da Santa Terezinha há uma vila de mesmo nome cercada de plantações de cana de açúcar, onde vivem cerca de cinco mil pessoas, que em vão sonharam com a reativação da moagem. Entre essas pessoas há aposentados da usina, mas também famílias que recebem ajuda de parentes desempregados após a desativação da indústria migrados para trabalhar em outros lugares, alguns funcionários públicos e pequenos comerciantes. Em 2010, agravando a situação, o lugar foi devastado por uma grande inundação, que fez cerca de quatro mil desabrigados. Usar a arte para insuflar vida ao que restou dos prédios da usina e estimular a comunidade a encontrar novos meios de subsistência tornou-se o grande desafio assumido por Ricardo e sua mulher, a arquiteta Bruna Pessoa de Queiroz. Fomentar a economia alternativa é uma das metas do casal.

Casal Bruna e Ricardo Pessoa de Queiroz idealizou o projeto de ressignificação do lugar após visita a Inhotim e por sugestão do artista Hugo França (Foto: Natália Dantas)

A inspiração para transformar a Santa Terezinha em usina de arte surgiu durante uma visita do casal a Minas Gerais, em 2011. Nesse ano, Ricardo e Bruna visitaram o Instituto Inhotim, misto de museu privado de arte contemporânea e jardim botânico, concebido pelo empresário mineiro Bernardo de Mello Paz para a zona rural de Brumadinho (MG), nos anos 1980. Ali o casal ficou encantado com as peças de mobiliário e decoração do designer e artista plástico gaúcho Hugo França, feitas a partir de resíduos florestais, e resolveu convidá-lo para desenvolver algo semelhante para a antiga Casa Grande da Santa Terezinha. “Em todas as três visitas que nos fez, a partir de 2013, Hugo França empregou somente matéria-prima do lugar e trabalhou com a ajuda da comunidade”, lembra Ricardo. Mesma conduta teria mais tarde o artista paraibano José Rufino, mundialmente respeitado e que hoje tem no antigo hangar da usina uma exposição permanente.

França foi quem sugeriu ao casal ampliar a relação com a comunidade e criar residências artísticas. Ricardo e Bruna são grandes admiradores de arte. Ele, por exemplo, diz ter herdado de sua mãe o gosto pela arte. “Há 50 anos, ela participou da criação de um estilo de tapeçaria no agreste pernambucano, ao qual deu o nome de Tapetes Casa Caiada, que possibilitou um novo meio de vida a donas de casa de baixa renda”, rememora. “Hoje a tapeçaria estilo Casa Caiada virou uma tradição no Município de Lagoa do Carro, agreste de Pernambuco, assim como o artesanato de barro em Tracunhaém, os Bonecos do Mestre Vitalino, as Carrancas do São Francisco, os Papangus de Bezerros.”

Banco criado pelo designer Hugo França em uma de suas residências artísticas na usina a partir de resíduo florestal encontrado na propriedade (Foto: Adeildo Leite)

Ricardo relembra com gratidão que Hugo França foi o primeiro artista a trabalhar na sede da usina. “Sua produção foi toda feita a céu aberto, com insumos e mão de obra locais. Hoje a usina conta com um largo acervo de suas peças. Outro artista com obras no acervo da Santa Terezinha é José Rufino, que produziu vários trabalhos no galpão do antigo hangar, ao mesmo tempo em que o espaço deixou de ser uma oficina mecânica. Rufino trabalhou com restos de documentos, peças inservíveis e, principalmente, com ex-funcionários da companhia. Em uma das obras, ainda em processo, fez impressões das mãos dos trabalhadores sobre folhas de pagamento da usina. O hangar tornou-se o núcleo do programa de residências artísticas e um dos principais espaços de oficinas, encontros artísticos, trabalhos de criação e exposições.”

Para viabilizar o projeto, Ricardo e Bruna, juntamente com Bárbara Maranhão e o artista José Rufino, começaram a formar a Associação Socioambiental e Cultural Jacuípe e a atrair associados entre os empresários pernambucanos, de modo que a entidade se formalizou em janeiro de 2015. Sua função: integrar a produção artística e a sociedade local, oferecendo aos moradores da vila uma alternativa de empoderamento de novas perspectivas de trabalho. “Ressignificar os espaços e profissões dessas pessoas possibilita a abertura de novos horizontes”, disse Bruna à época ao Jornal do Comércio, do Recife.

Moradores do entorno e visitantes assistem à apresentação de um dos grupos musicais entre as muitas atrações do Festival Arte na Usina 2016 (Foto: Andrea Rego Barros)

Com o apoio de patrocinadores, a Associação Jacuípe já realizou na Santa Terezinha duas edições do Festival Arte na Usina, a primeira em 2015, de 11 a 20 de novembro, e a segunda em 2016, de 16 a 22 do mesmo mês, com oito oficinas cada uma. Para a primeira edição, trouxe do interior de São Paulo a expertise do Festival Arte Serrinha-Projeto Expedição Profunda, que há 15 anos agita a zona rural de Bragança Paulista nos meses de julho, atraindo centenas de artistas e turistas. Participaram os artistas paulistas Beto Brant (cineasta) e Benjamim Taubkin (pianista), o mineiro Ronaldo Fraga (estilista) e os paraibanos José Rufino (artista visual) e Marcelo Coutinho (cinema). Os convidados pernambucanos foram os artistas visuais Daniel Santiago, Márcio Almeida, Marcelo Silveira, João Lin e Beth da Matta, além do músico Adiel Luna.

Da segunda edição, no ano passado, participaram 15 artistas vindos de diferentes pontos do Brasil – nas artes visuais, os paulistas Fábio Delduque, Leda Catunda e Laura Vinci, mais o cearense Bitu Cassundé; na poesia, a paranaense Alice Ruiz; no cinema, o pernambucano Kleber Mendonça Filho; no teatro, o pernambucano Hélder Vasconcelos; na dança, a gaúcha Lu Brites; e na fotografia, o paraense Luiz Braga – para dar oficinas, proferir palestras, apresentar shows e performances, exibir filmes. Cerca de 700 pessoas prestigiaram o evento, das quais 150 vivenciaram ensinamentos nas oficinas de arte.

Ator Helder Vasconcelos em oficina artística voltada para crianças e adolescentes (Foto: Andrea Rego Barros)

A escola de música para crianças e adolescentes até 16 anos oferece aulas de teoria musical e prática de instrumentos, como flauta, violino, viola clássica, violoncelo e violão, e tem hoje 53 alunos matriculados.  “Em 2017 estamos abrindo uma nova turma de instrumento, para quem quer estudar piano”, conta Ricardo. As aulas de teoria são duas vezes por semana e a de prática instrumental, uma vez. Ao longo do ano, entre as várias oficinas de arte também estão a de percussão e a de luteria, esta última destinada à construção de instrumentos musicais como o pífaro. De tão animado pela iniciativa, o pianista Benjamim Taubkin chegou a doar um piano para a escola.

Em implantação há, ainda, o jardim botânico. “Inhotim me deslumbrou”, admite Ricardo. “Tanto que também queremos ter aqui um parque com dupla função para o visitante: educar com o jardim botânico e, ao mesmo tempo, oferecer convívio com obras de arte de diversos artistas do Brasil.” O jardim botânico, onde existia o aeródromo da usina, terá 29 hectares com mais de 35 mil espécies da Mata Atlântica, que é nativa no local, bem como exemplares exógenos do mundo inteiro, desde a própria cana de açúcar. “Para isso contratamos o biólogo Eduardo Gomes Gonçalves, da Yamandu Soluções Ambientais, professor universitário e autor do livro Se Não Correr é Planta, que também está projetando o jardim botânico do Estado do Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, e criou o de Inhotim, anos atrás.”

José Rufino registra as mãos de ex-funcionária da Santa Terezinha sobre folha de pagamentos da usina. O trabalho deu origem a “Opera Hominum” (Foto: Arquivo do Artista)

Para o jardim botânico, Ricardo e Bruna pensaram em obras de arte que coabitem com a natureza, basicamente em esculturas contemporâneas que fujam do conceito tradicional. “Não queremos trabalhos envelopados em pavilhões fechados”, descreve Ricardo. “Nosso desejo é um jardim com obras sustentáveis, que possam conviver com o habitat sem depender de energia elétrica. Nossa intenção é fugir dos espaços fechados e fazer tudo em locais abertos.” O projeto já possui cinco obras em fase de implantação, assinadas pelos artistas pernambucanos Paulo Meira, Marcelo Silveira, Márcio Almeida, Francisco Brennand e Paulo Bruscky; e dois artistas em residência: o paulista Vanderlei Lopes (de Penápolis) e a mineira Laís Myrrha, que mora em São Paulo e participou da última Bienal Internacional na cidade, além de José Rufino.

Ricardo diz que é difícil quantificar sobre a venda de obras produzidas durante o Programa de Residência Artística. “Que eu me lembre, em sua última residência Hugo França teve mais de dez compradores para seus trabalhos”, observa Ricardo. “Quando existe venda de obras, ela é feita na própria usina, ao final da da residência artística. O artista expõe e os compradores aparecem mais por bate-boca entre amigos do que por publicidade. As pessoas que sabem que fazemos esse trabalho sempre prestigiam os artistas.”

Estilista Ronaldo Fraga, cercado por participantes de sua oficina de criação, no festival de 2015 (Foto: Andrea Rego Barros)

No Festival Arte na Usina de 2016 foi lançado o Programa de Residência Literária. O escritor pode ficar na usina, numa espécie de retiro, para desenvolver sua pesquisa e escrever sua obra. Um escritor convidado e já confirmado para fazer residência em 2017 é o pernambucano José Luiz Passos, que é professor de literatura na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). “Ele veio para o Brasil em novembro para lançar seu 5º livro, “Arte como Transformação”, e participou do nosso festival”, conta Ricardo. O outro residente literário será o escritor Bitu Cassundé, curador e diretor do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, de Fortaleza.

O projeto, contudo, vai muito além. “Temos em Pernambuco o Porto Digital de Recife, área de excelência em tecnologia, e estamos tentando trazer uma extensão dele para a usina. Também queremos oferecer essa oportunidade à comunidade”, acrescenta Ricardo. “E o mesmo estamos fazendo com o Sebrae, para estimular o empreendedorismo local. Este ano a gente provocou a comunidade a exercer a atividade de hotelaria e ela foi muito bem recebida. Mais de dez casas foram alugadas durante o festival. Muita gente veio de Ribeirão Preto para se hospedar. O Festival deu uma grande revigorada em restaurantes.”

Menino em uma das oficinas de arte oferecidas para crianças da comunidade. O futuro passa por edução e cultura (Foto: Andrea Rego Barros)

Discreto ao responder quanto custa tudo isso, Ricardo diz que até existe investimento. “Mas não é nada de causar espanto. Na verdade, a gente pode dizer que somos apenas animadores culturais.” Sabe-se, no entanto, que o financiamento das atividades gerais do projeto, assim como acontece com Inhotim, é privado, mas o festival tem contado com o patrocínio da Copergás e apoio da Aguardente Pitú e do Consulado da Áustria.

A poesia compareceu ao Festival Arte na Usina 2016 pelas mãos da paranaense Alice Ruiz, contracenando com objetos e o espaço (Foto: Andrea Rego Barros)

Evidentemente, a manutenção do espaço também preocupa e constitui um outro desafio. “Implantar um projeto desses é uma coisa, manter para a posteridade é outra”, admite Ricardo. “Precisamos transformar esse projeto em algo sustentável. Hoje tudo é gratuito. Oficinas, shows, cursos, exibições de filmes, escola de música. O jardim botânico certamente será um espaço fechado com visitação cobrada. Faremos convênios com escolas, mas isso não será agora, só futuramente. Vamos ter que cobrar ingresso para poder manter. Temos ideia de outras fontes de recursos, além de bilheteria, mas também ainda é cedo para falar delas”, finaliza.

Como empresário, Ricardo diz que continua na atividade canavieira, mas somente como plantador, comercializando sua produção para processamento em outras usinas de açúcar e álcool. Ele têm seis filhos, de três a 27 anos, e questionado como os está preparando para o futuro, respondeu assim: “Eu os estimulo a seguirem carreiras independentes, seja como empreendedores, seja como executivos. Minha filha mais velha, por exemplo, estuda Relações Internacionais nos EUA e pretende seguir carreira no Exterior. Antes estudou na Europa e na China. Acredito que como acionistas, tendo suas carreiras estabelecidas fora dos negócios da família, fique mais leve para eles a condução do acionista executivo.”

O pianista paulista Benjamim Taubkin, presente no Festival Arte na Usina 2015, doou um piano para a Escola de Música

 

Fonte:fbfe

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