Eu não perdoo a Fernanda Torres

FERNANDA TORRES

 

Por  Stephanie  Ribeiro

A Fernanda Torres fez um texto que virou assunto da semana no qual ela reproduz machismo, é abertamente racista em seus argumentos, acusa o feminismo de vitimização e usa o termo “mulata” (palavra de cunho racista já explicada em outro texto do mesmo Blog onde ela escreveu, o #AgoraÉQueSãoElas da Folha). Eu e Djamila Ribeiro escrevemos juntas nesse mesmo blog e explicamos passo a passo, o que é racismo na palavra, no cotidiano e como ele age sobre o corpo da mulher negra. Parece que Torres não leu.

Então:

Torres virou assunto em sites que restringem pautas feministas.

Torres virou assunto nos status do Facebook de feministas e anti-feministas.

Torres virou assunto no Twitter e na madrugada chegou a ser Trending Topic.

Torres virou a polêmica feminista mais comentada da semana.

E sim, eu me incomodo com isso.

Eu me incomodo porque mulheres como Torres possuem tempo para ler sobrefeminismo. Ela nem precisava de muito, só precisava ler o Blog onde pretendia postar sua visão da condição de Mulher. O Blog possui, mesmo com pouco tempo de existência, artigos ótimos. Hoje, feministas fazem um trabalho amplo e acessível nas rede sociais. Se ela quisesse ampliar sua pesquisa, era só literalmente digitar no Google. E ela não pode dizer que não conhece nomes do feminismo já que sua mãe, a atriz Fernanda Montenegro, recitou Simone De Beauvoir no teatro e foi assunto em jornais por isso.

A questão é que mulheres como Torres possuem espaço na mídia e poderiam fortalecer narrativas mais importantes e urgentes no momento, como o aborto, que voltou a ser debatido. Estamos vivendo uma epidemia de zika, já temos 5 mil casos de crianças com microcefalia, das regiões norte e nordeste, com renda baixíssima, morando em locais cujo saneamento básico é precário e onde o acesso a hospitais é restrito.

Falando diretamente:

Temos um monte de mulheres negras e/ou pobres em uma situação extremamente delicada no Brasil por questões de raça, classe e médica e socioambientais. Mas estamos debatendo o que Fernanda Torres acha: ela não se dá ao luxo de se preocupar com coisas para além de si mesma e sua vivência restrita de mulher branca.

Então, não! Eu não desculpo Fernanda Torres.

Podem achar que estou culpando uma mulher.

Entretanto, ela não é uma mulher como eu. Ela é branca e eu sou negra. E o racismo já designou quem será vista como “agressiva” e quem será vista como “a mulher que tem opiniões divergentes contundentes”.

Essa é a diferença enorme entre as opiniões que damos. Então, não desculpo. Não desculpo nem ela e nem outras mulheres brancas, pelas reações que vão recair sobre mim, por esse texto que agora escrevo, por exemplo.

Não é só pelo racismo evidente em achar que uma mulher negra merece ser chamada de mulata e também pelo assédio aceitável e elogioso para com o corpo dela.

É pelo racismo que fica nas entrelinhas, por achar que falar de si mesma e de sua visão enviesada sobre o feminismo, sendo uma mulher branca, magra, rica e conhecida não terá consequências.

Ela poderia ter mais consciência, já que goza de privilégios: não precisa acordar de madrugada para pegar o trem, metrô, ônibus, durante duas horas pra chegar no trabalho. Ou não se preocupar com a limpeza da própria casa pois sempre tem uma “mulata” (ironia) para cumprir essa função.

Esses privilégios, ao invés de serem usados para expor algo para além dela são tão maiores, que pautas mais necessárias no feminismo atual não são pensadas por ela e muitas outras feministas que circulam por aí, e que inclusive apontaram o dedo para Fernanda.

Enquanto mulheres brancas acreditarem que o feminismo é só sobre elas, e suas experiências pessoais — essas que por sinal são intransferíveis e precisam ser contextualizadas dentro das condições que as cercam, pois diferem e muito do que uma mulher negra vive –, teremos um grande problema.

Não adianta mais, pelo menos para mim, achar que interseccionalidade e se importar com mulheres negras, é dizer, em apenas um parágrafo de um texto todo:

“Mulheres negras sofrem mais com esse problema”

Interseccionalidade é muito além disso:

É entender, dentro da sua narrativa de mulher branca, que as possibilidades devem ser expandidas.

Isso é sobre ceder espaços, e às vezes se manter em silêncio para que outras possam falar.

E quem se importa em escutar narrativas de mulheres negras não ousa achar que o assédio que sofremos é passível de riso, piada ou inveja. Afinal, uma mulher negra tem mais chances de ser estuprada do que uma mulher branca no Brasil (as mulheres negras entre 16 e 24 anos têm três vezes mais probabilidade de serem estupradas que as mulheres brancas).

Por isso me causa horrores só de pensar que mulheres brancas nunca pararam para entender que o assédio de rua que recai sobre a mulher negra é diferente: não é só sobre ser chamada de “gostosa”, é sobre escutar:

“Sua Preta”.

“Sua Fedida”.

“Olha esse seu cabelo”.

“É morenina, mas eu comia”.

“Olha esse rabo”.

“Caia de boca nessa buceta”.

É horrível, mas sim, escutamos isso, e quando mais escura for a sua pele e seu corpo estiver fora do padrão, mais agressivo é o tratamento que você vai receber.

Por isso, Torres está a anos luz de distância de compreender o que é o tratamento dado para uma mulher negra, gorda e de pele escura, a ponto de achar que assédio com negras é positivo e portanto, invejável.

A agressividade que um corpo negro sofre é muito maior do que a agressividade que um corpo branco recebe. Isso está na história brasileira. Recebemos o tratamento de “animal escravizado”:

“Doze anos é a idade flor das africanas. Nelas há de quando em quando um encanto tão grande, que a gente esquece a cor…As negrinhas são geralmente fornidas e sólidas, com feições denotando agradável amabilidade e todos os movimentos cheios de uma graça natural, pés e mãos plasticamente belos. Dos olhos irradia um fogo tão peculiar e o seio arfa em tão ansioso desejo, que é difícil resistir a tais seduções”.

Carl Schlichthorst. O Rio de Janeiro como é (1825-26). Apud: Maria Lúcia Mott. A Criança Escrava na Literatura dos Viajantes. 1979, p. 64.

“Como as brancas não se vendem, nem por ouro bem por prata, hão de ser sempre as senhoras das cachorras das mulatas.”

Apud Goulart, 1971, p 49

 A história que não apagou das nossas peles os anos que mulheres foram estupradas, escravizadas, tiveram seus filhos tirados, alguns mortos e outros também violentados. Pelos senhores e também pelas senhoras:

“Matou o filhinho de uma das escravas, e apresentou ao marido, que supeitava fôsse o pai do mesmo cadáver da crainça assado e enfiado no espeto.”

Apud Goulart, 1971, p 49

Então é pela história das “mulatas” que Torres desconhece, que eu não perdoo.

Eu não posso mais perdoar as pessoas brancas, que fecham os olhos, nariz e boca para o passado e que ainda limitam nosso presente e ainda vão marcar nosso futuro, enquanto negros.

Por que Torres, sabendo que seu nome carrega uma carga midiática, não escreveu sobre aborto?

Por que não falou da desigualdade social que tende a ser mais drástica para mulheres?

Por que não trouxe à tona o mérito ilegítimo celebrado numa sociedade racista, abissal em classes e sem igualdade de oportunidades?

Por que não pensou em como, ao longo da sua vida, gozou de uma maioria de empregadas domésticas negras fazendo o que ela precisava, e qual seria o motivo pra isso?

Por que, inclusive, não seguiu a ‘regrinha’ mainstream das feministas norte-americanas que só falam da diferença salarial, pois talvez esse ainda seja um dos pontos que mais as separam dos homens brancos?

Até isso seria “menos pior” do que falar que gostaria de ter a mesma união que os homens.

Homens são super unidos mesmo, principalmente no quesito odiar mulheres.

Eu respondo a todos esses “porquês”:

Torres, assim como muitas mulheres brancas, fica esperando assuntos serem mastigados e dados de “colherzinha”. E depois ainda goza do privilégio de “desculpas aceitas e reverenciadas” por seus erros, dadas por outras mulheres brancas — e que inclusive são aclamadas por isso, que é o minímo que se espera de alguém decente e intelectualmente honesto.

Vão dizer que eu estou cobrando demais da Fernanda Torres: “ela não é obrigada a saber tudo isso”. Na verdade, ela deveria ser cobrada sim. Quem nasce pobre e miserável já nasce sabendo o que isso significa. Nenhum negro recebe uma cartilha, mas todos sabem que quando a polícia diz: Para! Ele é o suspeito e se não parar, ele morre. E isso não vai virar notícia e nem escândalo, isso é “normal”.

Quebrar esta “normalidade” também cabe a nós. No Brasil, quem nasce em verdadeiros berços de ouro, goza da ignorância sobre a realidade do outro, para manutenção do seu conforto.

O maior privilégio das pessoas brancas, ao meu ver, é não precisar saber o que é ser negro na sociedade racista que elas ajudam a manter quando se abstêm de saber e agir sobre isso.

Torres não é aquela garota negra que, nas manifestações contra o governo PT, mesmo sendo menor de idade, foi filmada, exposta, virou meme nas redes sociais e parou de ir na escola por um tempo por causa do bullying.

Mesmo que ela tenha “entendido o erro”, o perdão é algo muito restrito. A gente tende a compreender e perdoar quem é como nós. Inclusive, o espaço de fala dado para pedir perdão, ele também se restringe — e muito.

Então eu não vou ser uma das feministas que vai compartilhar o texto de Torres e dizer: “é isso aí!”, dando tapinha nas costas e congratulações como se ter consciência de gênero, raça e classe fosse uma virtude, quando é uma questão de responsabilidade.

Se um dia eu errar, quase nenhuma mulher branca vai fazer isso por mim.

Então, chega!

Chega de mulheres brancas sendo perdoadas facilmente por opiniões que recaem mais drasticamente sobre mulheres pobres e negras. Chega de achar que esse desfavor não tem um impacto grande no feminismo. É só perceber como gastamos tempo e energia em rebatê-la. E chega de colocar o selo de “feminista” em qualquer famosa com uma postura mais “diferente”.

Eu tive que assistir Taylor Swift ser exaltada por feministas após um discurso no Grammy, em que ela deixa evidente seu privilégio branco.

Taylor não é uma cantora extraordinária, mas vive sendo premiada. Doa a quem doer, esse é um privlégio de quem possui uma estética vendável, independente do que cante ou fale.

E fica mais evidente o racismo quando ela se destaca em cima do álbum de um homem negro que aborda racismo, como Kendrick Lamar.

Tratar racismo numa sociedade como a norte-americana, onde um jovem negro tem 2,5 mais chances de ser assassinado, é muito mais urgente, porém mais passível de ser ignorado.

A mesma Taylor que, quando Nicki Minaj falou sobre racismo, disse:

“Eu não fiz nada além de te amar e te apoiar. É uma pena que você tenha colocado as mulheres umas contra as outras. Talvez algum homem tenha tomado o seu lugar”

Assim como Taylor, muitas se comportam achando que é um problema de gênero. E, nos dois casos, é sobre raça também. Então, não perdoo nem Fernanda Torres, nem aquelas que agem como ela acreditando que aquilo foi “só” machismo e que elas, brancas, podem acolher racistas dentro do feminismo e que isso não me incomoda.

Até quando, nós, negras, vamos ser obrigadas a lidar com mulheres brancas racistas, em nome de uma sororidade que nunca nos protege?

Peço então para as feministas brancas:

Parem de forçar a barra e de colocar qualquer artista branca com postura “menos cretina” em um patamar maior do que deveria. Parem de idolatrar as tantas teóricas e figuras negras que fizeram história, mas que vocês não leem ou desconhecem. Parem de achar que feminismo se resume ao filme As Sufragistas, mesmo que ele não tenha negras, quando deveria ter.

O sufrágio teve mulheres negras (EUA), teve mulheres indianas (Inglaterra), teve mulheres operárias que não são como a Meryl Streep. E parem de ficar esperando que uma feminista negra da atualidade mastigue temas para vocês entenderem que, por exemplo, não queremos ser chamadas de mulata.

Exerçam o privilégio de vocês: busquem informações, leiam, mastiguem por si mesmas, sejam além. E não é ler só para fazer um texto bonito sobre racismo e ver ele sendo compartilhado e achar que ganhou o selo de “bom branco”. É entender o que é racismo para ser uma pessoa decente, justa e feminista. Pois o feminismo não pode, num país de maioria negra, ser algo que aceita e passa a mão na cabeça do racismo.

Se as antepassadas de vocês fizeram revolução, o que falar das nossas, que mesmo com o peso da escravidão nas costas, lutaram, sobreviveram e construíram trajetórias que hoje permitem que a gente não se curve e diga, apontando o dedo na cara de quem for: não vamos aceitar mais narrativas racistas dentro de movimentos sociais que se dizem humanistas, emancipatórios e que querem igualdade?

Por fim, eu só queria dizer que é lamentável como a classe artística nacional se mostra ignorante, deslumbrada e despreparada, achando que ser revolucionário é fazer teatro e falar sobre sexo abertamente, enquanto reproduzem conceitos racistas — como fazer blackface — e acreditam que é ‘censura’ quando é criticado pelo movimento negro, ou quando trata o machismo como se fosse algo bonito e romantizado.

O machismo que Torres não sente “tanto assim”, mata.

Mata uma maioria negra e pobre. Coisa que Torres não é, mas podia exercer empatia. Mas, assim como muitas feministas, isso fica só na teoria e bons (no caso dela nem isso) textos.

E antes que alguma mulher branca me diga que perdoar é um dom divino, só quero enfatizar que quem escolhe se vai perdoar ou não alguém por racismo, sou eu. Porque se para muitas foi complicado ler esse texto, imagina para mim que viu Torres usando um espaço do qual eu já tinha compartilhado, para ser racista. Isso só prova que, como eu já pensava, mulheres negras se esforçam, pesquisam, quantificam, estudam, sentem, vivem, desenham o que é racismo, e mesmo assim pessoas brancasexercem o privilégio de nos ignorar e ousam nos chamar de vitimistas, ou que não nos esforçamos para sermos entendidas.

Até quando a gente vai falar e ninguém vai entender?

Até quando a sororidade e a retratação só servirá para brancas?

Até quando a gente vai apontar elitismo e racismo, e ninguém vai compreender a gravidade disso?

Se o texto dela foi intitulado de “Mulher”, eu pergunto: nós, negras, ainda não somos mulheres?

Somos mulheres que também merecem ter suas pautas e demandas acolhidas e tratadas com seriedade e respeito. Mas não é o que vivenciamos e sentimos.

Então, fico feliz que ela tenha voltado atrás, mas não perdoo.

Uma “mea culpa” que não envolve a questão racial, é incompleta.

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